Ainda lembro das manifestações de junho de 2013. Lembro da Cris Lisboa me chamando para encontrar com ela quase embaixo do viaduto da Salgado Filho e lembro de eu não conseguindo chegar na hora marcada. Lembro das janelas todas abertas da João Pessoa, das pessoas nas ruas acreditando que juntas poderiam fazer algo novo. Lembro que eu quis muito fazer um cartaz. E fiz. Lembro de quando a marcha de junho de 2013 se deu conta de que seguia em direção à sede da Zero Hora. Na esquina da João Pessoa com a Ipiranga, lembro dos estrondos, das pessoas tentando não entrar em pânico, do cheiro forte do gás e do medo de ser pisoteado. A alegria sempre morre quando o medo entra em cena.
Lembro que, em junho de 2013, o que se tentava manter era a calma. Enquanto, na linha de frente, os Black Blocks faziam o serviço de criminalizar a manifestação, os que estavam mais atrás não entendiam nada. Nem todos viam tanto sentido em seguir até a sede da Zero Hora. No meio do medo, encontrei a psicóloga de uma amiga. Apavorada, ela pedia calma, tapando o nariz com as mãos e chorando sem parar por conta dos gás. Não sei se o pessoal do jornal chegou a sentir medo, nunca vou à redação. Quem estava na rua, sentiu. Apesar de tudo, lembro de lembrar de Deleuze e de Nietzsche. Lembro de sentir um corpo catártico. Dançante. Lembro de gostar de estar ali.
Já acuados por bombas, cavalos e gás, seguíamos pela Cidade Baixa, em uma Lima e Silva protegida por barricadas. Era junho de 2013. No céu, o clarão do fogo era de um ônibus queimando na João Pessoa. Algumas pessoas deixavam o bar para tentar entender a rua. Duas crespas mais velhas, fumando na calçada, comentavam entre si: "Eles estão fazendo tudo igual..." - em uma referência clara aos anos de chumbo. Já quase chegando na Perimetral, os caras do Cavanhas olhando para nós e nós olhando para as telas planas mostrando o povo invadindo Brasília. A sombra dos corpos sobre a arquitetura de Niemeyer impressionava.
Ao contrário daqueles que pensam que manifestação não servem para nada, as de junho de 2013 contribuíram para importantes avanços no processo democrático. O projeto de lei que reservaria 75% das receitas dos royalties do pré-sal para educação e os outros 25% para a saúde, foi aprovado na Câmara. A PEC 37, que tiraria o poder de investigação do Ministério Público, foi reprovada. O projeto de lei tornando hedionda a corrupção passiva e ativa foi aprovado no Senado. No transporte público, as tarifas tiveram diminuição ou desistência de aumento. A Câmara, pressionada pelas manifestações em Belo Horizonte, Rio e Brasília, cancelou a verba de R$ 43 milhões destinada à contratação de serviços por parte do Ministério das Comunicações. A mesma Câmara aprovou a redução para zero das alíquotas de contribuições sociais que incidem sobre o transporte coletivo. Em julho, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara decretou a prisão do primeiro parlamentar desde 1974, Natan Donadon, do PMDB, condenado por formação de quadrilha a 13 anos em regime inicialmente fechado. Após seis anos da primeira proposta sobre o tema, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado conseguiu aprovar a PEC que acabaria com todo o tipo de voto secreto nas duas Casas.
Caminhando pela Redenção no domingo passado, chamou a atenção a cara dessas manifestações de domingo. Um deputado do PP discursava contra a corrupção. Os manifestantes aplaudiam, talvez ignorando a lista divulgada em março, na qual o PP é o partido mais citado na Operação Lava-Jato, com 32 nomes. Talvez também preferissem não saber sobre as mortes no trânsito e as prescrições em tempo veloz. Representantes do PMDB, partido de Eduardo Cunha, cobravam o fim de tudo de ruim que aí está. Enquanto isso, na TV, a muito emocionada Cássia Kiss cobrava da presidência uma responsabilidade que, hoje, cabe aos Estados. E reproduziu essa estranha síndrome de sinhozinho que vem tomando conta do discurso: "os políticos são nossos empregados". Não são. A relação é outra.
2015 foi um ano ruim para a nossa democracia. O protagonismo da guerra partidária em detrimento de um projeto de país, serviu para comprovar que, nessa batalha, somos todos perdedores. Que o próximo ano celebre as uniões. Feliz 2016!
*Ismael Caneppele escreve mensalmente para o Caderno PrOA.
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