*Professor titular da Faculdade de Comunicação Social da PUCRS. É autor do livro recém-lançado Revolucionários, Mártires e Terroristas: a Utopia e suas Consequências (Paulus, 2015)
Por definição, a utopia é um lugar que não existe e que jamais existirá, a não ser como fantasia. Exemplo disso é a ambição salafista de restabelecer o califado. No caso, o que motiva os soldados de Alá é a sensação de que os valores da modernidade liberal são inaceitáveis. Por isso mesmo a rebelião militar islâmica se define como restauradora e retificadora. Segundo a teologia salafista, o que é urgente agora é a chegada da boa nova islâmica, um Estado governado pela shaaria.
Um salafi representa a figura do crente ideal, o que reproduz na atualidade o comportamento dos primeiros fiéis que viveram na época de Maomé. Este cenário é fantasiado e serve de modelo ao muçulmano contemporâneo. O termo vem de al-Salaf al-Salih, os predecessores virtuosos. O devaneio do ISIS é alimentado por textos canônicos que alinham os militantes muçulmanos à causa dissidente.
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Segundo esta doutrina, o mundo há de ser conquistado e convertido. Tal pretensão levou o novelista e Prêmio Nobel V.S. Naipaul a classificar o Estado Islâmico fundado pelo ISIS de IV Reich. Ele chama a atenção para o barbarismo e o fanatismo da organização, sua dedicação ao genocídio e sua crença na superioridade racial.
O seu comportamento violento e a decorrente fuga desesperada de refugiados começam a ser explicados como consequência do colapso da civilização árabe e islâmica. É o que diz, por exemplo, Hisham Melhem, o editor em Washington do canal por satélite Al-Arabiya. Segundo o ex-comandante do exército do Paquistão, Mirza Aslam Berg, a nostalgia (pelo califado) consola, "mas para enfrentar os desafios do futuro a pessoa deve aprender do passado, e não vivê-lo. As indignidades sofridas por outros devem ser aprendidas como uma lição para o aperfeiçoamento, e não uma desculpa para a indolência ou a revanche que perpetua em vez de sanar as feridas".
A verdade é que esta sensação de queda irreversível já há bastante tempo acompanha a opinião pública islâmica e árabe. Ela foi expressa pelo poeta sírio Nizar Qabanni, falecido em 1998. Seu poema Quando Eles Irão Anunciar a Morte dos Árabes? provocou à época de sua publicação enorme polêmica e até hoje é referido como exemplo deste tipo de lamentação. Este desânimo foi expresso também pelo ex-presidente da Tunísia, Moncef Marzouki. Em seu pronunciamento a TV Al-Jazeera em 11 de setembro de 2015, ele disse que "Eu sempre defini Lar como um lugar para onde se foge, mas se tornou um lugar de onde se escapa".
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A análise dos 148 conflitos ideológicos listados pelo Heidelberg Institute for International Conflict Research mostra que a utopia mais influente no mundo contemporâneo é a que propõe a formação do Estado Islâmico. Em 2013, grupos que defendem este objetivo atuavam na Síria, Iêmen, Bósnia e Herzegovina, Rússia, Filipinas, Sérvia, Mali, Níger, Nigéria, Somália, Bangladesh, Índia, Indonésia, Cazaquistão, Paquistão, Afeganistão, Argélia, Egito, Iraque, Líbano, Mauritânia, Tajiquistão, Uzbequistão e Arábia Saudita.
Militantes com pretensão revolucionária têm uma característica: eles são irredutíveis em seus objetivos políticos. O seu mal-estar é geral e irrestrito. Sua luta é contra os fundamentos da sociedade que hostilizam. Qualquer utopia (1) almeja consertar a realidade, (2) propõe um ideal perfeccionista, (3) defende uma causa, (4) desperta a imaginação do militante, (5) refere-se a um mundo desconhecido, (6) articula os descontentes e (7) divulga a esperança. Com frequência, o revolucionário (8) utiliza métodos violentos de luta, entre eles a guerra assimétrica. (9) A utopia dá uma resposta à decadência social percebida como intolerável. Esta luta revolucionária, (10) que ambiciona forjar um novo ser humano, (11) cativa e recruta novos simpatizantes e (12) se indispõe às regras democráticas. Ou seja, participam das rebeliões utópicas atores que desejam a profunda transformação da sociedade.
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A utopia salafista decorre de um estado delusional. Isso implica numa certeza sustentada com convicção absoluta indisposta à mudança (incorrigibilidade). O revolucionário não se dá conta que perdeu contato com a realidade. Ele está convencido de que é dotado de um poder especial e de um talento singular. A utopia salafista é um delírio paranoide - o Islã está sendo atacado e ameaça ser destruído por seus inimigos. É um delírio melancólico - a saudade incontida de um tempo no qual o Islã parecia prevalecer no mundo. Também é um delírio de grandeza - o crente muçulmano está predestinado a salvar a humanidade.
O eventual ocaso desta fantasia, a do Estado Islâmico, e de sua aspiração, a que visa converter todo o mundo às verdades reveladas por Maomé, dará margem para o repensar desta dolorosa fantasia. Até que isso ocorra as pessoas continuarão a assistir o drama do embate sectário que separa os sunitas dos xiitas, e o civilizacional, o que separa esta nova doutrina totalitária da liberal.