As placas enferrujadas e o mato tomando conta da estrada de concreto que deveria ser a principal ligação entre cinco cidades da Região Metropolitana e trecho vital para o transporte de cargas confirmam a situação de abandono da ERS-118. Iniciada em 2006, a obra de duplicação de 21,3km da via _ que contemplaria Sapucaia do Sul, Esteio, Cachoeirinha e Gravataí _ está parada há um ano e sem perspectivas de reinício por parte do Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem (Daer). Segundo o órgão, apenas 49% estão duplicados e foram feitos 8,4 km de ruas laterais.
Mais do que ver os viadutos inacabados e as vias asfaltadas que se perdem no barro ou no mato, quem depende da rodovia sofre com os congestionamentos e os atrasos dos ônibus, a inexistência de paradas com proteção e os acidentes constantes em trechos com sinalização precária. Ex-moradores que não receberam o aluguel social prometido pelo Estado estão voltando para as margens da estrada, construindo uma nova vila em área destinada à duplicação.
Como se não bastasse a paralisação da obra mais aguardada na região, nos outros 18km entre Alvorada e Viamão, até o entroncamento com a ERS-040, e que não fazem parte da duplicação, a inexistência de sinalização horizontal em pelo menos 5km da via vem causando tragédias, como o acidente que vitimou uma criança de três anos na segunda-feira passada, no km 28, em Viamão.
A reportagem percorreu os 40km de maior movimento da via, por onde passam todos os dias mais de 130 linhas de ônibus e milhares de veículos. Enquanto a situação parece distante de uma solução, os ganhos com a revitalização, prometidos pelo governo, estão se tornando perdas para moradores das margens e usuários da rodovia.
Chevette virou casa
Às margens da rodovia, no Km 2, no Bairro Capão da Cruz, em Sapucaia do Sul, o gari Carlos Evandro da Rosa, 30 anos, colocou um colchão dentro de um Chevette velho e há duas semanas instalou-se exatamente no mesmo local de onde ele foi tirado, há dois anos, pelo Daer. Carlos decidiu voltar depois de ser despejado das duas peças no Bairro Padre Réus, em Gravataí, onde morava com a mulher, quatro filhos - de três, quatro, cinco e seis anos - e o cunhado, um adolescente cadeirante de 14 anos.
Alegando atraso de três meses no repasse do aluguel social de R$ 500 mensais, pagos pelo Estado, ele não teve alternativa.
- Gastava R$ 800 por mês com aluguel, água e luz. Paguei dois meses com dinheiro do meu bolso, mas não tive para o terceiro. Mandei a família para a casa da cunhada e vim para cá. Um dia, tivemos uma casa de quatro cômodos onde morávamos há quase dez anos. Hoje, estamos abandonados e sendo tratados como maloqueiros - desabafou.
Ex-vizinha do gari, a dona de casa Marinês Rodrigues, 37 anos, deixou geladeira e televisão de 29 polegadas como pagamento de um mês de aluguel atrasado num bairro de Esteio e transferiu-se para o antigo terreno onde morou por 20 anos antes de ser retirada pelo Daer. Também sem o repasse há três meses, foi despejada na semana passada junto com os seis filhos - com idades entre seis e 18 anos - e o neto de um ano.
- Pagaram direitinho por 12 meses. A bagunça começou neste ano. Perdi casa, móveis, gastei com passagem mais de dez vezes até o banco para ver se tinha saído o dinheiro, perdi o emprego de doméstica e até a minha dignidade. Só me sobrou uma barraca emprestada, onde divido o colchão com os meus filhos - resumiu, indignada.
A Secretaria Estadual de Habitação admitiu surpresa ao ser informada de que há famílias sem o repasse. Segundo o órgão, na quarta-feira foram repassados R$ 194 mil para o pagamento atrasado de parte das 928 reassentadas em casas de aluguel. Porém, não revelou quanto representa este valor nos atrasos, apenas orientou as famílias a procurarem as prefeituras - responsáveis pela negociação com o Estado.
Cones recolhidos
Próximo ao cruzamento com a Avenida Frederico Augusto Ritter, em Cachoeirinha, onde há um viaduto que vai do nada a lugar nenhum, o chapeador Paulo Cesar de Moura, 42 anos, perdeu as contas de quantos acidentes presenciou e de quantas pessoas ajudou a resgatar em seis anos morando e trabalhando nas margens da ERS-118. Só na semana passada, foi testemunha de três no trecho.
- São tantos buracos e falta de sinalização, que não culpo os motoristas. À noite, se torna ainda mais perigosa. É comum me pedirem chave de roda e macaco para arrumarem pneus estourados - comentou.
Preocupado com a sinalização precária do trecho, Paulo Cesar tem uma rotina comum a outros moradores da região. Todas as manhãs, ele confere se os cones dos dois desvios próximos estão nos lugares corretos. Se não estão, ele e outros vizinhos costumam se arriscar em meio aos carros para ajeitá-los.
- Se não tem funcionários do Daer atuando por aqui, a gente precisa ajudar. A verdade é que estamos esquecidos - afirmou.
Sem paradas
Morador de Sapucaia do Sul, o auxiliar de escritório Celsioni Vieira, 36 anos, viu as horas fora de casa aumentarem desde o início das obras na rodovia. Diariamente, o ônibus atrasa entre 30 e 45 minutos para chegar até a parada em frente à empresa onde trabalha, na divisa entre Cachoeirinha e Gravataí.
Foto: Fernando Gomes
Foto: Fernando Gomes
Foto: Fernando Gomes
- É tanto buraco, que o ônibus se arrasta. Nas quintas-feiras e nas sextas-feiras, no final da tarde, ainda tem o problema dos congestionamentos na volta. Ou seja, perco quase duas horas por dia num trecho que eu levaria menos de meia hora de ida e de volta - calculou.
Mas a paciência de Celsioni acaba mesmo é em dias chuvosos. Como a parada só ganhará proteção quando a duplicação for concluída, o auxiliar vira alvo dos caminhões que passam na rodovia. No dia em que a reportagem conversou com ele, repórter e fotógrafo sentiram na pele a situação de Celsioni. A cada veículo que cruzava o trecho, a água jorrava.
- Não tem guarda-chuva que sustente a situação - disse, enquanto tentava segurar um na direção dos veículos.
Conforme o Daer, o projeto de duplicação da rodovia inclui a remodelação das paradas de ônibus, com os recuos e especificações necessárias, mas ainda sem data para ser realizada.
Boa vontade
Carregando pela mão o filho João Vitor, oito anos, a dona de casa Karina Fraga Ferreira, 25 anos, enfrenta o desafio diário de cruzar a rodovia num trecho de pista simples e sem sinaleira. O filho estuda numa escola do outro lado da via, e é Karina quem precisa atravessá-lo pelo menos duas vezes por dia.
- No início da manhã ou no final da tarde, perdemos até meia hora para conseguirmos atravessar. É necessário contar com a boa vontade dos motoristas, pois o trânsito é intenso.
Fora a demora para cruzar a rodovia, Karina já não sabe dizer quantas vezes correu o risco de ser atropelada por apressados que tentam desviar de quem diminui a velocidade para ela passar com o filho:
- O perigo é constante. As promessas de melhorar este trecho ficaram só no papel mesmo.
Prejuízo semanal
É no bolso que o caminhoneiro Valter Colares, 58 anos, sente as perdas relacionadas a ERS-118. Há mais de três décadas, ele cruza a via carregando argamassa num caminhão de cinco eixos. Como circula dezenas de vezes por dia pelo trecho, Valter calcula que gasta, em média, R$ 1 mil por semana com troca de pneus e suspensão do veículo.
- Mesmo conhecendo a estrada, as crateras vão destruindo o veículo. O pneu rasga, e preciso remendar ou comprar um novo. Outro problema recorrente é a falta de acostamento em quase todo o trecho com a obra parada - ressaltou.
Na semana passada, o experiente Valter acabou sendo multado em R$ 127 e cinco pontos na carteira de motorista por atravessar a pista para entrar num posto de gasolina, no km 22, em Gravataí. Não há acostamento no local e ele precisou parar sobre a rodovia.
_ O fiscal sabe disso, mas não perdoou. E ainda tem uma cratera no mesmo local, que obriga os motoristas a entrarem na pista contrária ou no mato. Estão brincando com as vidas que passam por esta estrada _ sintetizou.
Foto: Fernando Gomes
Foto: Fernando Gomes
Restou o para-brisa
Rodovia com alta densidade urbana, e circulação de ônibus e de caminhões de carga, a ERS-118 registrou 337 acidentes entre outubro de 2014 e o mesmo período deste ano. Conforme o Comando Rodoviário da Brigada Militar, foram 657 veículos envolvidos, que causaram nove mortes e 248 feridos.
Na segunda-feira passada, a estatística ampliou-se com a morte da pequena Emanuelly Behenck, três anos, numa colisão frontal envolvendo uma Kombi e um caminhão de pequeno porte, no Km 28, em Viamão. A menina - que estava na Kombi com familiares e amigos - morreu no local e outras 12 pessoas ficaram feridas.
No trecho onde ocorreu o acidente há cerca de 5km sem sinalização horizontal. Na sexta-feira passada, os sinais do impacto, como espelho e para-brisa, permaneciam no acostamento da rodovia.
Entrega para a iniciativa privada
Segundo a assessoria de imprensa do Daer, "o Governo do Estado dispõe de um repasse R$ 6 milhões da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) para ser investido na duplicação, mas duas das empresas contratadas para o serviço (Sultepa e Conterra) passam por um processo de recuperação judicial e estão impossibilitadas de dar andamento aos trabalhos. A terceira empresa (Triunfo) solicitou um repasse maior para dar andamento às obras no ritmo desejado".
Como a rescisão contratual e a realização de um novo processo licitatório pode atrasar demais a retomada das obras, o Daer criou um grupo de trabalho para avaliar a viabilidade de incluir a ERS-118 no programa de concessão de rodovias que está sendo coordenado pelo secretário estadual dos Transportes, Pedro Westphalen. A proposta é conceder à iniciativa privada não apenas os 22 km previstos na duplicação (entre Sapucaia do Sul e Gravataí), mas todo o trecho compreendido entre os entroncamentos com a BR-116 (Sapucaia) e a ERS-040 (Viamão). O estudo que apontará se é viável ou não conceder o trecho deve ser concluído até o final do ano.
A rodovia
- No total, a ERS-118 tem 80,38km de extensão, desde Sapucaia do Sul até Vila de Itapuã, em Viamão. São 50km pavimentados e 30km não pavimentados.
- Entre o entroncamento com a BR-116 até o entroncamento com a ERS-040 são 40km.
- Cruza por Viamão, Alvorada, Gravataí, Cachoeirinha, Esteio e Sapucaia do Sul.
- Mais de 130 linhas de ônibus (municipais, intermunicipais e especiais) passam pelo local.
A situação da rodovia
* Entre 2006 e 2014 foram investidos R$ 65,9 milhões (R$ 65.907.157,40) na duplicação da rodovia.
* Hoje, os usuários trafegam em 11km dos 22km duplicados. Porém, já há buracos na nova pista entregue.
* A duplicação da ERS-118 começou no ano de 2006, pelo lote um, entre os kms 11 e 21,3, em Gravataí.
* Em 2011, iniciaram-se os serviços no lote dois _ entre os kms 5 e 11 _, entre Sapucaia do Sul e Gravataí.
* As obras do lote três, em Sapucaia do Sul, entre os km 0 e 5, começaram em 2013.
* Do km 0 ao km 5 (BR-116 em direção à BR-290- Free Way)
Construtora: Conterra
Percentual executado do contrato: 7%
Valor inicial: R$ 36,8 milhões (contrato firmado em 2012 - valores são reajustados automaticamente no pagamento à empresa)
* Do km 5 ao km 11
Construtora: Sultepa
Percentual executado do contrato: 50%
Valor inicial: R$ 57 milhões (contrato firmado em 2010 - valores são reajustados automaticamente no pagamento à empresa)
* Do km 11 ao km 21,360
Construtora: Triunfo
Percentual executado do contrato: 71%
Valor inicial: R$ 33,8 milhões (contrato firmado em 2006 - valores são reajustados automaticamente no pagamento à empresa)
* Há seis obras por fazer ou em andamento nestes trechos da ERS-118. Todas estão paradas. São elas o Viaduto Itacolomi, Macaqueamento do viaduto sobre a ERS-020 e arroio Barnabé, Viaduto Rondon, Viaduto Ritter, Arroio Sapucaia e Viaduto sobre a tubulação da Transpreto.