Mais do que os 66 milhões de apavorados, os atentados que assolam a França em 2015 produziram outro abalo profundo: valores que forjaram a sociedade francesa estão em xeque. O simbólico bordão "Liberdade, Igualdade e Fraternidade", que triunfou sobre a tirania no século 18 - e inspirou a tolerância democrática no Ocidente inteiro - agoniza diante do medo e dos bombardeios terroristas.
- O país dos direitos humanos e da solidariedade, com conceitos republicanos muito arraigados desde a Revolução Francesa, vai conviver com a privação de liberdades. E verá crescer a ojeriza aos imigrantes - prevê o ex-funcionário da Corte Internacional de Justiça da ONU, com sede em Haia, Leonardo Nemer Caldeira Brant, professor de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.
Essa repulsa aos estrangeiros ganha força em meio a uma onda migratória que, só neste ano, levou mais de 300 mil refugiados da Síria e do norte da África a buscarem abrigo na Europa. Fugindo da guerra promovida pelos mesmos extremistas responsáveis pelos ataques em Paris, pelo menos 3 mil pessoas se afogaram no Mediterrâneo antes de chegar ao continente. E agora a solidariedade dá sinais de naufrágio.
Depois dos atentados do último dia 13, a líder francesa de extrema-direita Marine Le Pen, da Frente Nacional, exigiu a suspensão da entrada de imigrantes após frisar que um dos terroristas teria ingressado na Europa com a multidão de refugiados - a polícia ainda não confirma a informação. O discurso anti-imigração já tomou a Hungria, cresceu na Polônia, se espalhou até pela Alemanha e, na semana passada, motivou 25 governadores dos Estados Unidos a contrariarem as intenções do presidente Barack Obama de acolher fugitivos da Síria.
- O que veremos nos próximos meses será uma vitória de partidos radicais de direita e um desmantelamento dos direitos, mas de forma seletiva. O que hoje se denuncia no Brasil, um certo genocídio da juventude negra, passará a se desenhar na Europa - afirma o sociólogo Carlos Anjos, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) que morou na França para realizar seu pós-doutorado.
Anjos projeta um aumento sem precedentes da violência policial nas periferias, onde vivem descendentes árabes e africanos: além de sofrer interceptações frequentes em suas comunicações, jovens serão coagidos e eventualmente mortos ao menor sinal de suspeição. Conforme o professor, casos como o do brasileiro Jean Charles de Menezes, assassinado em 2005 pela polícia inglesa após ser confundido com um terrorista, se tornarão endêmicos. Historiador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Leandro Karnal concorda:
- A França vive uma coesão nacional em torno de ideais nacionalistas e culturais que deve se propagar pela Europa. O medo gera filhos como a submissão, e a população aceitará melhor a repressão em centros, periferias e até em aeroportos.
Leandro Karnal lembra que faz parte do imaginário humano supor que os ataques venham sempre dos "diferentes". No continente europeu, portanto, imigrantes representam perigo; nativos brancos indicam segurança.
- Em parte, foi por pensar assim que a segurança de Israel não impediu que um colono judeu se aproximasse do primeiro-ministro Yitzhak Rabin (assassinado em 1995 por um israelense como ele) - recorda o historiador.
Para o sociólogo Carlos Anjos, não é a sociedade europeia que se beneficiará da fúria contra a população árabe: é justamente o Estado Islâmico. Porque, quanto mais estigmatizados e segregados esses jovens se sentirem, mais fácil é para as organizações terroristas convencê-los de entrar na guerra.
Todos os autores dos atentados que mataram 129 pessoas em Paris nasceram na França ou na Bélgica - eram filhos ou netos de imigrantes, e não estrangeiros recém-chegados. Paulo Visentini, professor de Relações Internacionais da UFRGS e autor do livro O Grande Oriente Médio (Elsevier, 2014), afirma que há um ressentimento inegável por trás de boa parte da população de origem árabe ou africana que habita esses países.
- Muitos adotam nomes ou sobrenomes franceses porque, se telefonarem para alguém dizendo "aqui é Muhammed, da empresa tal", ninguém compra nada. São vistos como cidadãos de segunda classe, têm suas culturas rejeitadas com frequência, e isso provoca um sentimento de inferioridade - afirma Visentini.
Mas e os valores franceses de igualdade e fraternidade? E a tradição socialista e multicultural da França? Não são justamente os ideias que garantiriam a inclusão de todos?
- É que hoje a Europa vive uma violenta crise econômica. Tudo muda - resume a coordenadora do Centro Brasileiro de Estudos Africanos, Analúcia Danilevicz, também professora de Relações Internacionais da UFRGS.
Desde o final do século 19 até a explosão do desenvolvimento europeu, a partir da década de 1960, esses imigrantes chegavam para trabalhar na mão de obra braçal - havia emprego para todos, e recebê-los era uma necessidade. Tinham lá suas recompensas: eram integrados a um projeto nacional, e assim obtinham acesso a um eficiente sistema público de educação, moradia e saúde.
- Mas, desde os anos 1990, não existe mais aquele estado de bem-estar social. O desemprego é alto, e a capacidade do Estado de subsidiar a sociedade foi reduzida. Naturalmente, cresceu a reação política e social à presença dos imigrantes, que fundaram guetos empobrecidos nas grandes capitais - diz a professora Analúcia.
- E a França, historicamente, vende uma ideia de integração social. Hoje, isso atrai as pessoas e depois frustra - completa o jurista Leonardo Nemer Caldeira Brant.
Claro que nada disso é desculpa para sair explodindo bombas. A questão é que essa reiterada rejeição a cidadãos que, embora sejam franceses, não se sentem tratados como franceses, é tudo de que o Estado Islâmico precisa para convencê-los de uma vingança. Não à toa, o ministro do Interior da Alemanha, Thomas de Maizière, desconfia de que o passaporte sírio encontrado com um terrorista morto pode ter sido plantado pelo Estado Islâmico. A ideia da organização seria fazer a Europa odiar os refugiados da Síria - assim, seria mais fácil recrutar árabes revoltados com a Europa.
A essa altura, fica difícil não pensar no Brasil. Por que os jovens negros e pobres, que descendem de africanos e sofrem com preconceitos diários, não se rebelam com a mesma cólera? O contexto é outro. Enquanto na Europa os imigrantes chegaram há duas, três ou quatro gerações, aqui a população negra está instalada há séculos. Não há, no Brasil, um sentimento de traição ou de pertencimento a outra identidade, segundo o sociólogo Carlos Anjos.
O sociólogo oferece uma análise sobre como a França deveria, no mundo ideal, lidar com a situação - porque a forma como vai de fato lidar, essa todos sabem: com privação de liberdades e repressão policial.
- Tornou-se urgente uma reorganização moral em toda a Europa. Não faz sentido manter uma ideia de pureza cultural ou associar uma cor, no caso a branca, a um continente inteiro. Imigrantes deveriam se sentir parte do processo de luta contra o terrorismo, e não um alvo - avalia Anjos.
O professor Leonardo Brant, da UFMG, tem uma visão mais pragmática:
- Agora, a França precisa aperfeiçoar seu serviço de inteligência e dar uma resposta militar à altura. Se não fizer isso, conviverá com novos atentados e com uma direita radical dizendo que um governo democrático foi incapaz de responder ao desafio.
Falando em desafio, o lema "Liberdade, Igualdade e Fraternidade" enfrenta o seu: como valer para todos.