Lá por 1992, eu era uma guria de apartamento com alguns poucos instantes fora da caixa (ou das caixas dos amigos), como quando eu sentava em um pedaço de compensado e descia a milhão uma parte íngreme do terreno da escola ou como quando passava o sábado inteiro no condomínio do coleguinha F. Eu adorava aquele lugar mais do que qualquer coisa. Aos 10 anos, era tudo que eu entendia por liberdade. Isso incluía passear pelas ruas sem a supervisão dos adultos, andar ao lado de cachorros desconhecidos e explorar exaustivamente uma estrutura em ruínas que chamávamos de Casa Mal-Assombrada.
Havia um muro alto que circundava o lugar todo e guardas fazendo rondas ocasionais, mas eu nunca pensei naquilo como uma espécie de minicidade sitiada, o que, bem, ela era de fato. Com 10 anos de idade, eu não tinha a menor condição de juntar todas as peças do quebra-cabeça: que aquele simulacro de subúrbio norte-americano se tratava de um privilégio de pouquíssimos; que, naquele contexto, a liberdade só podia vir com o isolamento; que isso era um paradoxo definidor de toda a América Latina; que, quanto melhor fosse o de "dentro", pior seria o de "fora", e vice-versa.
Esse condomínio era o Jardim do Sol, na Zona Sul de Porto Alegre. Perdi o amigo F. quando ele mudou de escola. Nos anos seguintes, fui me distanciando também de todos os outros amigos que moravam lá dentro, de maneira que já no fim dos anos 90 não me era mais possível rever o lugar onde eu tinha construído tantas memórias (sou do tipo que dá um tchau silencioso para quartos, salas e jardins quando estou partindo. Isso diz muita coisa sobre minha personalidade).
Mas o local das minhas voltas de bicicleta, da cadela chamada She-Ra, das mesinhas redondas à beira da piscina tornou-se palco de uma tragédia no dia 28 de abril de 2013. Eduardo Vinícius Fösch dos Santos, 17 anos, foi encontrado inconsciente, com múltiplas lesões, no pátio de uma casa onde houvera uma festa. Eduardo morreu no hospital alguns dias depois. Ele era negro. Nesta semana, o Ministério Público Estadual concluiu que Eduardo foi provavelmente espancado pelos seguranças da festa. Segundo o MPE, o motivo pode ter sido puro e simples preconceito: os seguranças o teriam confundido com um penetra. Alguém dentro que deveria estar fora.
Não há como descrever o horror contido nesse ato. Enquanto essa noção de dentro e fora existir de um modo tão intenso como existe no Brasil, é difícil imaginar que atos extremos como o assassinato do menino Eduardo vão deixar de acontecer. Somos todos culpados por isso. E minha infância, a imagem da rua tranquila de F., onde passei tantos sábados andando de skate, comendo pizza, fingindo que eu era uma grande detetive, parece subitamente manchada de sangue.
*Carol Bensimon escreve mensalmente no caderno PrOA.
Leia mais colunas de Carol Bensimon