Ao viajar à Líbia em 2011 para cobrir a situação das mulheres no país após a queda do regime do coronel Muamar Kadafi, a jornalista francesa Annick Cojean, repórter do jornal Le Monde, esbarrou num testemunho alarmante. Uma mulher contou-lhe que, aos 15 anos, havia sido escolhida para prestar serviços sexuais ao homem mais poderoso do país. Durante sete anos, a mulher, identificada apenas como Soraya, foi submetida a uma torrente de sevícias pelo homem que prometia "libertar totalmente as mulheres da Líbia". No livro-reportagem O Harém de Kadafi - A História Real (Verus, R$ 35), Annick traça um retrato do reino de horror político e sexual engendrado pelo ditador morto em 2011. Na última terça-feira, Annick falou sobre seu trabalho na 61ª Feira do Livro de Porto Alegre.
O estupro, tema que a senhora aborda no livro O Harém de Kadafi, talvez seja a mais antiga das armas de guerra.
Sim. É incrível, porque o estupro é o crime perfeito. Porque contrariamente às outras armas, a pessoa estuprada não pode falar ou denunciar, porque se ela denuncia e fala será considerada também culpada. O aspecto muito particular do estupro é que a vítima é considerada culpada e deve ser eliminada. O crime de honra existe na maior parte dos países onde se pratica o estupro (como arma de guerra). O irmão, o pai, o primo são suscetíveis de matar a jovem porque a sua honra foi arranhada. Isso é algo absolutamente insuportável. Eu gostaria que, na ONU e nas discussões internacionais, esse assunto aparecesse.
Quantas vezes a senhora foi à Líbia para escrever o livro? A senhora fala árabe?
Não, não falo árabe. Quando fui à Líbia pela primeira vez, não sabia quase nada sobre o país. Fui até lá porque tinha havido a revolução, eu tinha estado na Tunísia e ficado muito interessada sobre o que se chamou Primavera Árabe. Fiquei chocada e surpresa por não ver reportagens sobre as mulheres na Líbia. Era muito raro alguém conhecer a Líbia ou Kadafi. Ninguém é capaz de citar um grande atleta líbio, um poeta líbio, um escritor, um cantor. Ninguém os conhece porque Kadafi dominava a cena e proibia que essas pessoas fossem conhecidas. Até mesmo os jogadores de futebol líbios tinham números (nas camisetas) e se impedia que se divulgassem seus nomes (risos). Não se sabia nada sobre a Líbia. Cheguei ao país justamente no final da revolução para fazer uma reportagem para o Le Monde sobre o papel das mulheres. Elas apoiaram Kadafi? Elas participaram da revolução? O que acontece com as mulheres? Por que não são jamais vistas? Para fazer as primeiras entrevistas, fiquei duas ou três semanas na Líbia. Foi lá que encontrei a jovem que, depois, se tornaria a heroína central de meu livro.
Era uma reportagem tão chocante e incrível e sobre algo que ninguém, nos jornais ou mesmo no Exterior, havia abordado, que decidi me afastar do jornal para voltar à Líbia. Passei três grandes temporadas no país, cada uma de um mês a um mês e meio, para reencontrar a jovem que eu havia entrevistado. Fiquei lá até o começo de 2012, quando Kadafi já estava morto. Fui às prisões, fui às pequenas aldeias para investigar esse assunto. Como o livro foi publicado no outono de 2012, houve muito impacto porque foi feita uma edição em árabe (além da edição francesa). Militantes pelos direitos humanos se encarregaram de distribuir o livro na Líbia. Houve notícias nos jornais líbios e manifestações de mulheres com cartazes que reproduziam a capa de meu livro - foi a primeira vez na história da Líbia que mulheres se manifestaram nas ruas.
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Os fatos narrados em seu livro são tão chocantes que, ao ouvi-los pela primeira vez, não se pode deixar de se perguntar se são verdadeiros. Como você fez para checar a veracidade das informações e estabelecer se não se tratava somente de uma história de horror?
De início, quando encontrei Soraya, me dei conta de que seu relato era impactante e aterrorizante e me perguntei como seria possível contar sua história porque Kadafi jamais a tornaria pública. Foi por isso que decidi voltar à Líbia e reencontrar Soraya. Eu a vi todos os dias durante um mês. Encontramo-nos em um apartamento secreto, e tomei notas do que ela disse. Como não falo árabe, trabalhei com uma militante líbia de direitos humanos, uma pessoa extraordinária que participara do movimento pela derrubada de Kadafi e que tinha visto muitas mulheres violentadas durante a revolução por agentes do regime. Trabalhei totalmente em confiança com essa mulher. Éramos apenas três pessoas: Soraya, essa mulher, que não quis que eu a citasse, e eu. Ao mesmo tempo, registrei o máximo de detalhes. Meu acordo com Soraya era que ela me diria toda a verdade - e isso não a incomodava, porque queria que a história fosse conhecida. Eu lhe disse que se houvesse o menor equívoco, o menor erro, sobre o estupro, isso seria irreparável, porque se houvesse o menor erro, não se poderia acreditar na história. Não se tinha o direito ao menor erro. Eu me apoiei em sua confiança, evidentemente. Eu cito todo o seu relato em detalhes. Fui a sua escola, encontrei seu pai e encontrei outras mulheres que não tinham tanto valor para o livro e que haviam vivido a mesma história de Soraya. E me parece que, para o leitor, pode ser interessante seguir em detalhe a vida dessa jovem e fechar o foco sobre uma única história, mas, se eu pude dar tanta força ao testemunho de Soraya - e decidi fazer isso -, é porque eu encontrei outras mulheres com o mesmo tipo de história. Todas me contaram sobre o subsolo para onde Kadafi levava suas mulheres. Todas me falaram do toque, da bênção, da droga, das humilhações, das viagens, das grandes mentiras, da manipulação. Encontrei mulheres como Soraya, mas também uma mulher que havia ficado presa durante todo o reinado de Kadafi. Ele começou a fazer isso logo depois de tomar o poder. Encontrei os pais de Soraya, pessoas que a haviam conhecido, funcionários que trabalharam com Kadafi, seu tradutor pessoal e outras testemunhas.
Seu livro sugere que, sob o regime de Kadafi, o abuso sexual era uma parte muito importante de um sistema de intimidação e de dominação política. Isso é verdadeiro?
Sim, exatamente. É evidente que o sexo era um tabu total nessa sociedade. Em todas as sociedades, é difícil falar de sexo e de política, mas particularmente no mundo árabe e na Líbia, uma das sociedades mais conservadoras do Magreb. Kadafi utilizou o sexo e o estupro como armas de poder e de dominação sobre seus amigos. Não somente sobre seus amigos, mas sobre sua família - ele também prendeu a noiva de seu filho -, seu governo - ele obrigou ministros a testemunhar que haviam tido relações sexuais -, sobre chefes de tribos e, às vezes, industriais, porque ele detestava os ricos. Em alguns casos, ele se jactava de haver tido em sua cama a mulher e a filha do interlocutor. A mulher e a filha se tornavam um instrumento para Kadafi dominar e esmagar outro homem. Ele também fazia isso com outros chefes de Estado da África. Kadafi se proclamou, em seus sonhos, uma espécie de senhor da África. Ele tinha muitas relações com países africanos aos quais dava muito dinheiro, convidava a fazer viagens, e se autointitulou "Rei dos Reis da África". Ao mesmo tempo, ele queria ter também mulheres ou filhas (de outros chefes de Estado). Muitas vezes, em conferências internacionais, ele sugeria às esposas dos chefes de Estado criar uma fundação para as mulheres ou para a cultura e as convidava a ir à Líbia receber uma contribuição. Ele lhes dava presentes extraordinários, e assim conseguia manter relações com essas mulheres. Dessa maneira, igualmente, ele conseguia dominar.
A escravização de mulheres era algo exclusivo de Kadafi ou era utilizada por outros poderosos no interior do antigo regime líbio?
É difícil de saber isso, porque já se passou muito tempo. Mas penso que, em certo nível, a prática da escravização era reservada a Kadafi. Mas a corrupção moral e sexual era disseminada no regime. As pessoas que tinham dinheiro e poder podiam receber favores das mulheres. A corrupção moral e sexual é algo contagioso. Quando o chefe se comporta dessa maneira, o exemplo é seguido.
Quatro anos após a morte de Kadhafi, sua herança ainda pesa sobre a Líbia
A França tem laços importantes com a Líbia. Como foi possível que esses casos de abuso sexual não tenham sido divulgados na França antes de 2011?
O estupro é algo extremamente particular. Não nos damos conta de a que ponto esse é um assunto tabu, embaraçoso, delicado. Isso é assim na França, e ainda mais na Líbia e em outros países do norte da África. É a pior coisa que pode acontecer. Não se fala disso, e, se acontece, faz-se segredo e se considera a pior ofensa que existe, pior que a morte. Assim, não se pode falar disso, não se pode denunciar. Suprime-se a mulher, que é a vítima, mata-se o homem, o agressor, mas não se fala disso. Organizações não governamentais como Anistia Internacional, Human Rights Watch e Liga de Direitos Humanos são relutantes. Quando estive na Líbia pela primeira vez, a responsável do Human Rights Watch me disse: "Annick, isso é muito díficil, é um assunto muito delicado. Tome cuidado". Antes de encontrar Soraya, eu estava desencorajada. Quando alguém me dizia que sabia algo sobre estupro, era em outra aldeia, e eu não poderia dizer quem me havia dito, nem o nome da vítima, nem o nome da aldeia onde tinha ocorrido o ataque! É um tabu.
Qual é a situação atual das mulheres da Líbia?
É muito difícil responder a essa pergunta. É uma situação muito ruim. A Líbia vive em um grande caos. Há dois governos diferentes, um islamista, em Trípoli, e outro governo, democrático, em Tubruk. Não é possível, neste momento, conciliá-los. Os islamistas controlam muitas cidades, incluindo a terra natal de Kadafi, Sirte. Quando os islamistas tomam uma cidade, a situação é absolutamente terrível para as mulheres. Elas não têm acesso à educação, não podem sair à rua a não ser em companhia do marido, têm de usar véu e não têm acesso a posições de responsabilidade. Nada pode ser pior do que o regime de Kadafi, mas, verdadeiramente, penso que a situação das mulheres na Líbia é dramática. As mulheres com acesso à educação e que têm algum dinheiro partiram para o Exterior. As que encontrei tentaram ter iniciativas, criar empresas, fazer com que a Líbia tomasse o caminho democrático da Tunísia, mas foram desencorajadas.
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