*Professora do PPG em Comunicação da Unisinos e atualmente pesquisadora visitante no Depto de Sociologia da University of Surrey, Reino Unido (CAPES)
Na última semana, um protesto nas ruas do bairro de Shoreditch, ao sul de Londres, virou notícia e trouxe à tona a discussão controversa sobre gentrificação - debate que extrapolou a área do planejamento urbano, onde se originou, e se encontra no epicentro de discussões sobre políticas públicas, ciências sociais, indústrias criativas, entre outras. A peculiaridade desse protesto específico foi por conta de seu alvo: um café hipster chamado Cereal Killer, que vende cereais a um preço acima da média - entre 3 e 5 libras, quando a média de preço de um cereal comum nos supermercados londrinos é de 1 libra.
O termo gentrificação (do inglês, gentrification) refere-se ao aumento de interesse econômico por uma determinada área de uma cidade. Imóveis de áreas urbanas antes deterioradas são comprados por conglomerados, empresas e indíviduos com dinheiro para investimento e que acabam por aumentar os valores de alugueis e dos negócios como um todo, afastando as famílias de renda mais baixa e a comunidade que ali residia antes do processo.
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Muitos estudiosos apontam que os primeiros "gentrificadores" são artistas e comunidades boêmias atrás de regiões mais interessantes e baratas para ali estabelecerem seus estúdios. Outros teóricos argumentam que a gentrificação não traz apenas pontos negativos, uma vez que atrai atenção para a área e permite o desenvolvimento de pequenos negócios, a queda dos índices de violência e pode levar a migrações entre as populações. Cidades como Nova York, San Francisco, Berlim e Londres, entre outras, têm passado por esse processo que recebe a crítica e os protestos de muitos ativistas e líderes comunitários, entre outros que temem o abandono das comunidades que ali habitavam.
Devido à sua busca por tendências de consumo e ocupação/apropriação de espaços e estéticas múltiplas, a figura do hipster tem sido associada ao processo da gentrificação por vários autores e tornou-se alvo de discursos de ódio, o que tem sido chamado ironicamente por alguns de "hipsterfobia". O grupo anarquista Class War ("Guerra de Classes"), liderado por Ian Bone, responsável pelos protestos - chamados Fuck Parade - tem como slogan a frase: "Retome as batidas. Retome a sua comunidade". O grupo, que nasceu nos anos 1980 e publicava um jornal, foi retomado recentemente e utiliza como meio de engajamento plataformas como Twitter, Facebook, Tumblr. Também divulga suas ações em folhetos e adesivos, sempre com uma linguagem próxima à das festas de rua, e se coloca como força opositora à gentrificação e ao consumo e estilo de vida dos hipsters - que, segundo eles, torna o custo de vida e os preços dos bairros da "moda" incompatíveis com a comunidade. Os donos do café Cereal Killer, dois irmãos, argumentam serem o alvo errado na luta antigentrificação, e que o grupo deveria focar nas grandes cadeias. Ian Bone responde que a publicidade gerada pelo café deu visibilidade ao grupo - e ao próprio café -, enquanto protestos anteriores contra grandes cadeias, como a Pret a Manger, não ganharam uma linha na imprensa.
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Em meio a essas controvérsias e a uma séria discussão sobre planejamento urbano, muitos questionamentos podem ser feitos também sob o ponto de vista de sociocultural, econômico, midiático etc. Sob o aspecto das teorias de subculturas, foco das pesquisas que venho desenvolvendo durante meu Estágio Sênior aqui em Londres, há claramente um retorno ao debate sobre classe social (subculturas de classe média x subculturas da classe trabalhadora) como categoria central - negligenciada e desconsiderada por alguns autores pós-subculturalistas e que trataram dos estudos de juventude no final dos anos 1990 e início dos anos 2000. Há uma performatização de gosto em diferentes âmbitos que também pauta as ações políticas e o capital cultural, e se revela na inserção e na escolha entre um polo ou outro. Lembramos que a formação de tribos e subculturas e os processos de ocupação de regiões das cidades estão articulados desde seu surgimento. Basta lembrarmos na Chicago do jazz dos anos 1940, na Londres dos mods x rockers dos anos 1960, na Nova York do punk e da discomusic dos 1970, na Detroit e na Berlim do Techno, entre outras. Por outro lado, na busca de estilos de vida (um dos pontos centrais na identificação subcultural) menos danosos e menos focados no consumo, há também policiamentos e agenciamentos estéticos que são simbolicamente negociados.
Nesse sentido, o ataque ao café hipster possui uma função midiática de visibilidade que advoga em defesa das comunidades menos privilegiadas, mas que pode perigosamente escorregar para discursos de ódio a um grupo específico, ao querer conferir uma autenticidade de apropriação dessas áreas da cidade apenas a determinados grupos. É interessante fazer esse apontamento, uma vez que, em sua história mais recente, a Inglaterra vem debatendo a legislação sobre crimes de ódio contra subculturas.
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