Cidade é a nave em que atravessamos séculos, e com ela ornamos e destruímos nossa nave mãe, Terra, "o errante navegante". A cidade é engenho terrível, que transforma e exaure a natureza, muda o espaço, o tempo e a condição humana; é carne de pedra, expressão com que Richard Sennett simboliza as relações orgânicas entre corpo, habitação e cidade, nosso habitat mimético. Com Foucault, lemos como este espaço ordenado molda as mentes e desenha os sentidos do poder e da história. A cidade é reflexiva, e nela se acumula a sua própria enciclopédia, e o seu conjunto de informações genéticas, sinais, códigos, mensagens (patrimônio) e, sobretudo, os cenários dinâmicos em que transformamos nossos corpos, linguagens, costumes e desejos (cultura). Mais que ruas e praças, a cidade é parte de nosso ser, cenário de nosso destino e garantia de nossa potência histórica.
A motivação gregária está em muitas espécies animais, e se intensifica, em nosso caso, com a descoberta do fogo, com o Homo erectus, cerca de 1,5 milhão de anos antes do presente (a.p.); à volta da fogueira, nossos ancestrais assaram comida, contaram histórias, viram o mundo se transformar por sua arte e técnica, e paulatinamente transformaram-se em seres modernos. Talvez o recém-descoberto Homo naledi mude paradigmas, mas por ora tem-se que o salto cultural seguinte foi o desenvolvimento de cultura funerária, sua imaginação abstrata, noção de tempo e finitude, coordenação ritual coletiva, cerca de 300 mil anos a.p.. A cidade, mesmo sendo fato muito recente na história evolutiva humana (5 mil anos), desenvolveu rapidamente o seu arsenal de recursos para se tornar o principal cenário das interações humanas, cativar, satisfazer e motivar a reprodução eficiente da espécie. Para isso, a cidade deve não apenas dar abrigo e comida, mas sobretudo prazer aos que nela vivem.
E onde está o prazer nas cidades, a força que une e gratifica? O prazer das cidades jorra em fontes, nos parques, doura em luz, nas áreas abertas, troca-se cordialmente, nas feiras, vai celebrar nas praças, eleva-se e pensa com encanto em shows, concertos, exposições e teatros, vai pedalar em vias livres, abrir mundos em bibliotecas, fotografar em cenários belos, vai repousar à sombra de árvores amigas, vai mover-se com afeto e segurança no mundo que lhe pertence. Cidade erótica, esta que nos une, satisfaz e faz a vida fluir avante, com felicidade e saúde.
A mutação mais revolucionária da cidade foi quando ela se tornou pólis, na Grécia, entre os séculos VIII e VI a.C.. Rompendo com o passado de regimes teocráticos, a pólis grega inaugurou a era em que a comunidade pondera e decide seu destino, regula seu direito, é autora responsável, como o são todos os seus cidadãos. Em Atenas, havia muitos cenários do novo regime de liberdade e autoria, no teatro de Dioniso, nos templos, necrópoles e fontes, nos jogos, no Pnyx, onde se reunia a Assembleia (Eclésia) e, sobretudo, na ágora, espaço vivo de interações variadas, com serviços públicos, comércio, fontes, áreas lúdicas e a proximidade de tudo o que importa.
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Desde então, as cidades vivem com nostalgia da ágora, e os cidadãos desejam trocar opiniões, participar, compreender, melhorar seu juízo pela dialética e conjuntamente produzir o bem comum. Uma cidade livre possui cenários de diálogo e interação, de troca positiva, e a ágora é seu símbolo. Adaptados ao espírito da ágora, recusamos viver onde falta a liberdade, e onde somos pacientes de decisões sem lastro de autoria coletiva. Igualmente, o bom funcionamento de uma pólis livre supõe cidadãos educados, informados e compelidos a participar, pois se formos idealizar como meta o conforto privado, torna-se impossível a autoria coletiva do destino histórico.
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Chegamos então à obrigação de observar esta Porto Alegre ora ameaçada, onde milhares de pessoas, confinadas no dia a dia, buscam os prazeres da orla e de toda a área pública desfrutável, e quer mais espaço público de qualidade, parques e praças; esta cidade, onde a opinião informada participa e conhece o que se passa, e recusa o que não resiste a análise; esta cidade de Universidades, museus, livrarias e teatros, de gente pensante, que pode e deve questionar com vigor: por que pretendem nos furtar área pública vocacionada para parque, para pôr na bela cena do encontro das águas, área mais nobre da cidade, um shopping center, e outros entulhos? Por que ocultam dos cidadãos a demonstração do que projetam, e sua ponderação e diálogo à luz dos conhecimentos que todos temos? Por que tecnocratas e especuladores gananciosos, sem visão arquitetônica e urbanística decente, pretendem usurpar a autoria da cidade, e nos impor como fato consumado o que nem nós nem eles (!) conhecemos suficientemente (sem projeto!)? Por que querem transformar em lixo o belo cenário, com água, céu, verde e história do cais Mauá? O não resoluto que esta ameaça exige é um sim generoso à liberdade, à beleza e às melhores possibilidades que esta Porto Alegre abriga, sobretudo a liberdade de sermos felizes no espaço da cidade, e torná-la mais bela a cada dia.
*Francisco Marshall é historiador, arqueólogo e professor da UFRGS. Escreve mensalmente no PrOA.
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