*Tradutor de literatura islandesa e nórdica. Reside em Reykjavík, capital da Islândia, desde 2002
Em meio à crise humanitária que assola as fronteiras europeias e por isso ganhou as manchetes internacionais na última semana, uma iniciativa individual nascida na Islândia também ganhou espaço em meio às imagens de crianças afogadas no Mediterrâneo.
Garoto sírio se torna o rosto do drama dos refugiados
A escritora islandesa Bryndís Björgvinsdóttir, autora de premiados livros infanto-juvenis (ainda inéditos no Brasil), criou um evento numa rede social na Internet denominado Prezada Eygló: um chamado da Síria, no qual publicou esta breve carta aberta endereçada à ministra de assistência social da Islândia, responsável pela acolhida de refugiados e asilados políticos no país do extremo norte da Europa:
Prezada Eygló Harðardóttir,
venho solicitar visto de residência e trabalho, registro de domicílio legal e todos os direitos humanos fundamentais para cinco cidadãos da Síria. Conheço uma pessoa que pode abrigar e alimentar esses cinco sírios e eu mesma me ofereço para custear a passagem aérea deles e também apresentá-los à Islândia e aos islandeses. Li nos jornais que a Islândia estaria cogitando receber cinquenta refugiados da Síria. Então agora serão cinquenta e cinco.
Saudações cordiais,
Bryndís.
As reações foram instantâneas: em três dias, mais de 17 mil islandeses apoiaram (até agora) o chamado da escritora e mais de mil se alistaram junto à Cruz Vermelha Islandesa, muitos oferecendo, além de trabalho voluntário, moradia em suas casas, roupas, brinquedos, remédios e doações em dinheiro para permitir que o pequeno país nórdico, cuja população é de apenas 330 mil habitantes, diante da pior crise humanitária em curso no continente europeu desde as guerras nos Bálcãs nos anos de 1990, possa dar uma contribuição mais significativa na recepção das vítimas deslocadas em razão do conflito naquele longínquo país do Oriente Médio.
Bryndís explicou que o objetivo do chamado era "antes de mais nada, mostrar ao governo islandês que a gente quer e que a gente pode fazer algo a mais".
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Logo a iniciativa islandesa se multiplicou mundo afora, com a criação de chamados semelhantes em países tão diversos como Alemanha, Austrália, Canadá, EUA, Finlândia, Índia, Letônia, Nova Zelândia, Reino Unido, Noruega etc.
Porém, vozes dissonantes também surgiram na ilha. Representantes de partidos conservadores - entre eles uma integrante do mesmo partido da ministra Eygló Harðardóttir, programaticamente isolacionista e contrário à imigração e à maior participação da Islândia em atividades de ajuda humanitária e cooperação internacional - vieram a público criticar a iniciativa de Bryndís, sob o argumento de que a Islândia deveria primeiro ajudar a todos os islandeses necessitados antes de oferecer ajuda a cidadãos estrangeiros. Um vereador de Reykjavík integrante de um desses partidos chegou a declarar, numa sessão extraordinária da câmara municipal convocada para debater o assunto, que a cada refugiado salvo de morrer afogado no Mediterrâneo outros tantos se sentem incentivados a buscar refúgio na Europa.
Outras vozes sugerem que a "pureza" da cultura islandesa ficaria em xeque se uma quantidade muito grande de refugiados fosse acolhida, pois muitos teriam dificuldade de se adaptar às tradições do país. Por fim, o ministro islandês das relações exteriores, do mesmo partido da ministra e conhecido por declarações polêmicas, quando questionado sobre o número de refugiados que a Islândia deveria se propor a receber, afirmou, literalmente, que não iria entrar numa competição para ver "quem mija mais longe".
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Sectarismos e boas intenções à parte, quem já trabalhou na recepção de imigrantes, refugiados ou asilados políticos sabe que é preciso mais do que boa vontade para que esse acolhimento, ainda mais crucial no caso de pessoas oriundas de regiões em conflito, seja bem feito. Não se trata apenas de garantir necessidades básicas mais prementes como moradia e alimentação mas também oferecer assistência psicológica e psiquiátrica aos que padecem de transtorno de desgaste pós-traumático, reforçar os sistemas de saúde e educação para dar conta da demanda adicional, oferecer cursos de idioma e recapacitação profissional para que os novos habitantes possam se inserir no mercado de trabalho e se integrar melhor na sua nova pátria. Infelizmente, essas necessidades, entre outras, não podem ser supridas apenas com ativismo e voluntarismo, mas sim com políticas públicas específicas de longo prazo que independam da ideologia do partido ou da coalizão eventualmente no poder.
Eygló Harðardóttir, a ministra a quem Bryndís dirigiu o chamado inicial, filiada ao Partido Progressista, que junto com o Partido da Independência forma a coalizão que governará a Islândia até 2017, anunciou no início de setembro algumas medidas concretas adotadas em resposta ao chamamento da escritora. Em coordenação com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, a Islândia deverá acolher uma quantidade no momento ainda não definida de refugiados atualmente acampados no Líbano, um dos países vizinhos mais afetados pela crise humanitária na Síria. De fato, o problema é bem maior do que os meios de comunicação passaram a repercutir no momento em que a massa de refugiados desesperados finalmente veio bater à porta dos países europeus. Do total da população síria de quase 20 milhões, cerca de quatro milhões de refugiados inundaram sobretudo os países lindeiros: quase dois milhões na Turquia, mais de um milhão no Líbano e mais de meio milhão na Jordânia.
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Como vários outros países europeus, a Islândia, que hoje integra o seleto clube dos países ditos "desenvolvidos" ou de "primeiro mundo", já viu dias de vacas magras. Entre 1870 e 1914, cerca de 15 mil emigrantes (um quinto da população islandesa na época) deixaram o país, tornando-se imigrantes em três países da América (Brasil, Canadá e EUA). A iniciativa tomada esta semana por parte da população islandesa pode ser vista, portanto, como uma curiosa retribuição histórica.
Cinquenta, 500 ou 5 mil. Mais importante do que a quantidade de refugiados recebidos será a qualidade do acolhimento que a Islândia e os demais países da comunidade internacional inspirados pelo exemplo islandês irão dispensar a essas pessoas que, circunstancialmente, se encontram na condição de refugiados.