Nas águas turvas em que ora navegamos, têm sido frequentes os sinais de intolerância, com histerias individuais e coletivas, comportamentos irracionais e quebra de fundamentos da civilidade. Subitamente, falece a prudência, esvai-se a racionalidade e cresce aquele tipo de violência que o animador canadense Norman McLaren ilustrou no documentário Neighbours (Oscar de 1952), em que uma flor nascida na divisa dos terrenos de dois cordiais vizinhos aos poucos provoca disputa feroz, e que Spike Lee expôs em O Verão de Sam (1999) e Alejandro Amenábar em Ágora (2009). Sem margem para argumentos polidos, sem dialética, os homens se tornam bestas, piores que animais, e transformam cólera em violência. Neste estado de obnubilação, erros trágicos são cometidos. A quem assiste, resta um sentimento de perplexidade: o que podemos fazer para impedir a escalada da intolerância e seu fruto ignóbil, a violência?
A violência dos linchamentos é o ícone deste comportamento, mas seu espectro é mais amplo, e deita raízes em causas culturais, como as que René Girard examinou em A Violência e o Sagrado (1972): uma tensão impregna a atmosfera e exige vítima sacrificial. Essa tensão tem forte lastro de intolerância étnica, religiosa, nacionalista, clubística, econômica (ricos x pobres) e política, sendo esta uma das piores, pois o ódio ao diferente político elimina a dialética civilizada dos argumentos e atitudes formais em prol de enfrentamentos cujo corolário tende a ser violento. Se a invenção da política foi a troca das lutas com armas (guerra civil) por disputas com argumentos, em prol do bem comum, a morte da política significa o retorno à barbárie, para malefício comum.
Entre os animais, são a defesa de alimento, território, prole e ritos nupciais que provocam as maiores agressividades. A história humana acrescenta a defesa da honra, a cupidez de bens e a pulsão erótica entre os fatores causais, todos conduzindo à ambição de poder e levando os homens às fronteiras éticas da vida em sociedade, fronteiras tênues, fácil e frequentemente quebradas. Freud, em O Futuro de uma Ilusão (1928) e em Mal-Estar na Civilização (1930), desenha amplo cenário histórico-cultural e psicológico destes problemas, e examina a complexa relação entre indivíduo e sociedade, desejo e repressão; o problema central, nesta ótica, é a natureza antissocial do homem, e sua eventual sublimação pela ilusão religiosa. O homem agride, mas para sobreviver a humanidade precisa compreender e conter esta vocação terrível; ao fazê-lo repressivamente, arrisca-se a agravar os males, intensificando as causas.
A investigação sobre as origens da intolerância leva, frequentemente, à história das religiões instituídas, pois são estas que produzem os graus mais críticos de negação da alteridade: eu estou com a verdade, e quem não a tem, é sub-humano e ameaça o triunfo do que me garante, um poder maior, divino. Em vista disto, alguns historiadores acusam o triunfo do cristianismo na Antiguidade Tardia como fonte maior da intolerância religiosa, momento em que, como disse o romanista Paul Veyne, passou-se de uma religião a la carte para religião de partido único. Mais que evolução espiritual, o monoteísmo provocou chauvinismo cultural, reforço da autocracia, exclusão do outro e triunfalismo de verdades baseadas no poder. O paradoxo de que religiões de vocação ética sejam autoras de grandes violências nos leva além das doutrinas morais, ao encontro da mesma histeria cultural que hoje anima o ISIS a cometer ignomínias na Síria. Em que pese a bondade de São Francisco, a moralidade religiosa não tem forças para suprimir a intolerância, e pode facilmente agrava-la. O nacionalismo moderno é herdeiro e propagador desta histeria identitária, fonte de muita violência.
Sempre, há causas complexas; não há fonte única para os eventos históricos, nem solução simples. A partir da vigília contra patologias da cultura, do divã à reflexão prudente, a saída só poderá vir do humanismo, da educação cultural, do cultivo de sensibilidades curiosas e respeitosas face ao outro, do prazer e da felicidade em ser tolerante, aberto, dialético, do aplauso à diversidade; de páginas, palcos, telas e festas, da vida de Eros na cidade, com que combateremos e conteremos a infantaria de Thanatos.
*Francisco Marshall escreve mensalmente no PrOA.
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