Um amigo me mandou uma tira da Mafalda (grande Quino!) em que ela se queixa ao Felipe - personagem da turma - do medo que sente ao ler as notícias e ao assistir à TV, pois falam incessantemente que o fim do mundo está próximo e todos morrerão no holocausto nuclear. "Todos?", pergunta Felipe? "Todos!", sofre Mafalda. Felipe abre um sorriso: "Puxa, primeira vez que falaram de mim na TV!".
Lecionando pela manhã, após ler sobre assassinatos e ameaças de bombas em Porto Alegre, ouvia os protestos na Ipiranga e na Bento Gonçalves, dos servidores cujos salários não foram pagos. Comentava com os alunos que a nossa crise particular, o pesado corte de verbas na ciência, é destaque na Science de 28 de agosto, em excelente síntese de Herton Escobar. No dia anterior, a capa da prestigiosa revista científica Cell estampava o trabalho de um jovem paulista que se radicou no Canadá, o Daniel de Carvalho. Conheci Daniel quando ele era um brilhante aluno da USP, não muito tempo atrás. Ele desvendou o mecanismo de ação de uma droga antitumoral, de maneira que poderemos agora utilizá-la de maneira mais adequada e combiná-la com tratamentos de última geração de forma muito eficiente. (Sim, muitas drogas anticâncer são usadas mesmo que não se conheçam todos os seus efeitos).
Dois dias antes, o site da Capes, órgão do Ministério da Educação que concede bolsas de estudo de educação superior, reportava o feito de um ex-bolsista, o mineiro Leonardo Teixeira, que criou uma empresa de biotecnologia focada em diagnósticos moleculares durante o doutorado nos Estados Unidos e vendeu-a para a Roche por quase meio bilhão (sim, você leu certo) de dólares. E exatamente há um mês atrás a mesma revista Science publicava o artigo de uma neurocientista carioca, Suzana Herculano Houzel, que vem a Porto Alegre para o Fronteiras do Pensamento, em que ela propõe um modelo pelo qual evoluiu o dobramento do cérebro. Publicar na Science é uma façanha hercúlea para um cientista brasileiro. Mas Suzana também teve a verba de seu laboratório cortada. Ela, os cientistas gaúchos, catarinenses, amazonenses...
Estamos todos, como a Mafalda, soterrados sob a enxurrada de más notícias que ouvimos todos os dias. Mas as boas notícias sobre nossas façanhas que servem de exemplo a toda Terra parecem de alguma maneira ser ainda mais doloridas - porque sabemos que passarão desapercebidas por aqueles que se pisoteiam hoje tentando extrair alguma vantagem pessoal da situação atual do Brasil. Exímios em apontar culpas para todos os lados, atrapalham-se com os recursos, naturais e humanos, que o Brasil possui. E apesar de tudo me identifico com o Felipe. Estamos pela primeira vez em muitos anos falando de nós. Expondo feridas, levantando também as incompetências, elencando didaticamente níveis de corrupção que muitos achavam que durariam para sempre. Podemos ver toda esta crise como uma oportunidade histórica. Parar e identificar quem foge da raia e quem pega no pesado. Competência não nos falta para encontrar soluções inovadoras. As pessoas e instituições fundamentais nos próximos anos serão as que não se esquivam da responsabilidade de construir um país apoiado nos talentos que insistem em existir aqui.
*Cristina Bonorino escreve mensalmente no caderno PrOA.
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