O Festival de Gramado presta tributo na próxima sexta-feira a Fernando Solanas, cineasta que moldou no seu engajamento político uma das mais vigorosas trajetórias no cinema documental da América Latina. A militância do realizador argentino de 79 anos o levou a trilhar a carreira parlamentar. Solanas já foi deputado federal, concorreu à presidência da Argentina e cumpre até 2019 mandato de senador integrante da frente de oposição ao governo de Cristina Kirchner. Em seus filmes mais emblemáticos, como La Hora de los Hornos (1968), o diretor aborda temas que lhe são caros ainda hoje, como subserviência da América Latina às nações neocolonialistas. Em entrevista a ZH, desde Buenos Aires, Solanas fala sobre o troféu Kikito de Cristal que irá receber em Gramado, da crise argentina e de seu novo filme, no qual retoma trechos da entrevista que fez com Juan Perón (1895 - 1974), exilado na Espanha, em 1971.
O senhor já esteve em Gramado apresentando filmes como A Viagem, em 1992, e A Última Estação, em 2005. Qual o sentimento de retornar como homenageado?
É sempre muito estimulante este tipo de reconhecimento e me sinto ainda mais gratificado por ter uma ligação de muito respeito com o Brasil e com o cinema brasileiro.
Em meio a suas atividades como senador, como andam seus projetos no cinema?
Minha atividade política e social se dá com meu trabalho no Senado e nos documentários que sigo fazendo. Acabo de finalizar meu novo filme (El Legado), que combina documentário e ficção, sobre o pensamento estratégico de Perón. Creio que é um de meus trabalhos mais interessantes. Nele volto a dois filmes que realizei em 1971, em Madri, com o grupo Cine Liberación. Com a distância de 40 anos, proponho uma reflexão do que restou da memória e do pensamento de Perón.
E como sobrevive a memória política de Perón na Argentina de hoje?
Sobrevive na memória do povo (risos). Seu pensamento foi manipulado e esvaziado de conteúdo. Muitos que se vestem de peronistas já não defendem as ideias de Perón.
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O senhor é uma das principais vozes da oposição ao governo da presidente Cristina Kirchner, que tem mostrado força apesar das críticas e crises que pontuam sua gestão. É um trabalho difícil?
Muito difícil. O governo Kirchner (de Cristina, eleita em 2007 e reeleita em 2011, e seu marido e antecessor, Néstor Kirchner, entre 2003 e 2007) é uma extraordinária impostura. Tem um duplo discurso. Nos últimos 12 anos, com maioria em duas câmaras, não mudou a principal herança de Menem. Deu continuidade ao processo de entrega (à iniciativa privada) das reservas minerais e da pesca. É um governo com altíssimo índice de corrupção disfarçado de progressista, que executou algumas políticas de direitos humanos, de integração latino-americana e de leis sociais, mas não tocou na política econômica do Menem. Temos na Argentina 14 milhões de pobres, um terço da população, 40% dos trabalhadores não têm cobertura da assistência social. E, além da corrupção, existem altos funcionários do governo envolvidos com o narcotráfico. A Argentina é um país de triangulação da efedrina. O assessor da presidente e candidato ao governo de Buenos Aires (Aníbal Fernández, ex-ministro da Justiça), é suspeito de envolvimento no assassinato de três pessoas ligadas ao tráfico de efedrina.
Como está a investigação da morte do procurador Alberto Nisman?
Desde os anos 1990, tivemos 20 assassinatos que foram tratados como suicídios. De funcionários públicos a empresários ligados a casos de corrupção. De nenhum deles se esclareceu nada. A Justiça está infiltrada pela corrupção. O caso Nisman está sem conclusão. Ele foi assassinado, sem dúvida, mas foram tantas as barbaridades que fizeram para manchar as investigações e as pistas que é muito difícil que se esclareça algo.
O senhor tem acompanhado a situação política no Brasil?
Acompanhei o nascimento e a chegada do PT ao governo com Lula. Tenho relação com Raul Pont e outros companheiros de Porto Alegre. Mas não me sinto próximo o suficiente para fazer análises da política brasileira. É evidente que muitos objetivos não se cumpriram e que não foi possível controlar a corrupção. É muito grave para nós, na Argentina, o tema da ética pública. A luta contra o narcotráfico e as redes mafiosas é um tema fundamental, assim como a consciência popular frente à ideia neoliberal de privatização do espaço público, das empresas públicas. É um tema político e cultural. Damos importância enorme à encíclica ambiental do Papa Francisco. É um documento hipercrítico ao capitalismo global e à sociedade de consumo. Assim como o discurso do Papa na Bolívia, em Santa Cruz de la Sierra, voltado aos movimentos populares da América Latina. É um discurso que marca uma posição extraordinariamente crítica ao modelo atual que impera na América Latina, tanto em países abertamente neoliberais quanto em países de governos progressistas que não conseguiram modificar essas políticas neoliberais. Somos contra a economia extrativista de matérias primas por países neocolonialistas. Meu partido, Proyecto Sur, integra uma frente que se põe em luta contra as forças jurídicas e econômicas neocoloniais que seguem dominando nosso país, sejam elas chinesas, americanas ou europeias, que vêm aqui e promovem desastres ambientais para extrair matéria-prima.
E essa é uma luta que poderia ser vencida a curto e médio prazo?
O povo está vivo e seguirá vivo reclamando as mesmas coisas. Se essa geração não puder mudar, a seguinte tentará de novo, porque é possível. Uma das primeiras coisas a se solucionar é promover um entendimento profundo entre os principais países da América Latina. É um absurdo que Argentina e Brasil não tenham um entendimento que supere assimetrias e pontos de conflito. A indústria argentina foi destroçada nos anos 1990. Necessitamos reconstruir nossa indústria. É uma situação diferente da do Brasil, que conseguiu preservar e desenvolver a sua indústria. Lá nos anos 1950, Perón pleiteava que a base da unidade da América do Sul estava em uma aliança entre Argentina, Brasil e Chile, em razão da ligação entre os dois oceanos. Seguimos falando o mesmo assunto até hoje.
O cinema argentino está refletindo a situação do país?
Fazemos de 80 a 90 longas por ano. Tem de tudo, filmes comerciais ligados à televisão, outros mais experimentais, documentários. O problema é a distribuição. Mas temos aqui o Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais (INCAA), que apoia o cinema nacional desde os anos 1950 seguindo um modelo existente em países como Espanha, Itália e França. O centro econômico do INCAA é o imposto sobre filmes (estrangeiros), que constitui um fundo que financia a escola nacional de cinema, a produção de filmes e festivais.
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