* Paulo Gleich é jornalista e psicanalista. Escreve mensalmente.
Na minha infância, quando o Brasil ainda era quase todo católico, eu pertencia a uma minoria, os evangélicos luteranos. Crescendo naquele meio, sempre ouvi que nós tínhamos a verdadeira leitura da palavra de Deus, a feita por Martinho Lutero. Não que os católicos ou os outros cristãos estivessem completamente errados: eles apenas não entendiam bem o significado da Sagrada Escritura, seus santos e rituais não condiziam com a vontade divina.
É inerente às religiões dizer-se portador, se não da verdade, da melhor verdade. Se não fosse assim, seria muito fácil para as ovelhas irem pastar em outro gramado - como fazia a "maluquinha" de uma cidade do interior que, a cada tanto, cansava da religião que frequentava e procurava outra. Além disso, nós, os ditos normais, não temos essa flexibilidade: quando cremos em algo vamos com tudo, precisamos provar para nós e para os outros, com atos e palavras, que ali está a Verdade. Caso contrário, nos enchemos de dúvidas, e se tem algo que nos atormenta são dúvidas demais.
Mas esse não é mal que atinja apenas as religiões. Na filosofia, há também disputas sem fim entre escolas pela posse da verdade. Assim como na sociologia, na história, no direito, na psicologia: em todos os campos, diferentes correntes brigam pela melhor verdade sobre seu objeto. Quem acha que isso é exclusividade das ciências humanas, se equivoca: nas exatas também há correntes e disputas. Caso duvide, pergunte a um físico teórico o que ele acha da física experimental, ou vice-versa. Como fomos privados, por Deus ou pelo acaso, do acesso direto a uma verdade única e unívoca, só nos resta tentar encontrar alguma que melhor nos represente.
Defender as próprias verdades frente às dos outros é um jeito de se autoafirmar, assim como o é juntar-se com quem defende as mesmas verdades; faz parte de construir e sustentar uma identidade. A rivalidade no mundo das ideias é tão antiga quanto as próprias ideias, e isso não é necessariamente ruim: a competição pode levar a aprimorar as reflexões e avançar no conhecimento e na argumentação. Assim como no esporte, a ideia de superar a si e ao outro pode funcionar como estímulo ao crescimento.
Mas é nesse ponto que a coisa tem claudicado: no encontro com as verdades dos outros, amplificado pelo poder de disseminação e conexão das redes sociais. No mais das vezes, age-se nesse encontro como um mau jornalista, que escuta na fala alheia apenas aquilo que corrobora o que já queria dizer de antemão. Há menos interesse em aprender, argumentar e interrogar as próprias certezas, mais em levantar a ola da própria torcida e jogar rojão na do adversário. Ou alguém realmente pensa que falas, imagens e textos raivosos, irônicos e sarcásticos produzem algo além de arrancar aplausos do próprio time - ou vaias do outro?
Nessas discussões em que tem predominado tom semelhante ao dos fervorosos pregadores da televisão, a quem mesmo se está tentando evangelizar? Como se tratam as próprias verdades, como algo a ser construído e refinado, ou como dogma inquestionável a defender, se necessário, com agressão? O que traz mais satisfação ao participar dos debates: a transmissão daquilo em que se acredita, ou o efeito catártico de recitar o evangelho com irmãos e pastores ou de chutar os santos dos outros?
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