* Ismael Caneppele é escritor e dramaturgo, autor de Os Famosos e os Duendes da Morte (2010). Escreve mensalmente.
"O fundamento do skate é o pé", me disse o skatista que nunca caiu. Gosto das leis universais, mas antipatizo com a ideia de tipo ideal. Leis universais, como as leis da física, me fascinam. Eu havia acabado de tomar mais um desses tombos capazes de congelar o tempo, e panicar. A lei da gravidade e da aceleração, quando operam juntas, podem ferir o corpo. Cair do skate é ter certeza da fratura. É cogitar a hemorragia interna. É ficar farejando na boca um gosto de sangue. O skate é o imperativo do pisar, por isso a iminência da queda. Por isso caí.
Se peixes não possuem pés, as quedas dos piscianos podem ser decorrentes da lei zodiacal. Assim como Caio F e Guimarães Rosa, também guardo um certo respeito sobre as leis do trânsito astral. Sentado no Marinha, pós queda, sentia o braço morrer. À medida que o dia esfriava, mais os nervos doíam. O sol levando consigo o calor da tarde, eu levando noite adentro a incerteza sobre os danos sofridos. O corpo, quando cai, instaura o novo. Cair é contabilizar os danos. Diferente da doença, o tombo inaugura o elogio do corpo pleno. É preciso estar no alto para cair.
Segurei o skate como quem segura o inimigo. Uma pequena família passou por mim. Um pai, uma mãe e a filha. Todos mais jovens do que eu. A mãe escondendo a careca quimioterápica debaixo do lenço preto. Os três de mãos dadas. Mesmo com dor, mesmo com medo, voltei ao skate. A coluna retomou o eixo e o braço parou um pouco de doer. Lembrei da queda de Dylan. A queda da moto. A perda temporária da guitarra. Perguntei, para mim mesmo, se todas as quedas são temporárias. Não soube responder.
O fim de semana meio que começou com a onda gay no Facebook. Súbito, quase todos os perfis amanheceram arco-irizados. Se os americanos democratas estavam esperando um motivo para justificar o apoio ao primeiro presidente negro, o reconhecimento do casamento gay representou um certo alívio. Obama assinou com a esquerda, e os homofóbicos pagantes de pau para o imperialismo americano torceram o nariz da mesma forma que teriam torcido em 1967, quando foi autorizado o casamento interracial. A voracidade branca e heteronormativa sobre um casamento que não lhe diz respeito é assustadora. Que poder é esse, conquistado à custa da negação de direitos universais por uma questão de corpo?
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Enquanto parte dos Estados Unidos, e do mundo facebookiano, celebrava mais uma queda nas barreiras entre os homens, o dito povo do bem empunhava a fome na África para tentar deslegitimizar a comemoração. Claro que muitos héteros e brancos também comemoraram o passo rumo à equidade de direitos universais. A vontade de igualdade não está na cor da pele ou na orientação sexual, colocar um arco-íris sobre a foto do perfil é dizer que aprova a supressão das diferenças legais. "A fiscalização do rabo alheio não está com nada", me disse o skatista. Concordei sem nada dizer.
À noite, perguntei a um amigo acadêmico sobre a relação entre a aprovação do casamento gay nos EUA e a diminuição da fome no mundo. O que para mim parecia incongruente, para ele era óbvio. Quanto mais os gays puderem se casar e, eventualmente, adotar crianças, menos faminto o mundo irá ficar. Se para cada casal heterossexual que rejeitou uma criança, há um casal gay disposto a abrigá-la, a questão do abandono infantil avançará tremendamente. Mas na contramão da solução para um problema social, como o abandono infantil, está o imperativo heterossexual impedindo que o problema, criado pelo seu próprio comportamento, seja resolvido pela comunidade como um todo.
No domingo, já devidamente medicado e acarinhado, o braço finalmente parou um pouco de doer. Penso nessas dores que não passam nunca. Na agonia constante dos nevrálgicos. Na potência de aceitar o fato consumado, por pior que ele seja. Caminho pela Redenção, que ainda pode desfrutar da elegância de não ter grades. Logo, ao que tudo indica, o parque será cercado por outdoors da pior qualidade para justificar o não pagamento de, mais um, horroroso muro. Assim como hoje o muro da Mauá é um erro arquitetônico advindo do medo, a cerca na Redenção significará mais um desses passos, irremediáveis, na contramão do tempo.
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Seguindo os gritos de um ativista, chego à parada do orgulho gay, nos fundos da Redenção, entre as árvores e uma UFRGS vazia. Lembrei de quando a bicicletada pelada adentrou a Padre Chagas. Descer a Padre Chagas pelado, era, para muitos ativistas, o ápice do ato. Na época, dois anos atrás, achei forçado achar tão incrível descer pelado o supra-sumo da cafonice endinheirada porto-alegrense. Vendo a parada gay gritar urgências mais para quem quer ouvi-las do que para os que estão surdos, achei fundamental o grito em lugares de maior atrito. Lugares onde o mesmo discurso seria recebido com maior novidade, e espanto. Lugares mais potentes de quedas.