* Francisco Marshall é Historiador, Arqueólogo e professor da UFRGS. Escreve mensalmente.
Portal de deusa e deuses, Bābili, confusão de linguagens, da torre ao zigurate ocupado, terra conflagrada, de combates de eros e do sangue de guerra, multimilenar atual cidade hoje em tela, nó de variadas semiologias.
É quando falamos de sinais, neste caso, aqueles contidos em um nome, Bābili acadiano (c. 2.300 a.C.), Babilôn dos gregos, "portal de deus"; qual deus? À época de Hammurabi (c. 1750 a.C.), o deus solar Shamash ou Marduk, deus tutelar amorita, mas não mais que um nome de deus, como milhares, fantasia com atributos variados. Afinal, o que são deuses, senão nomes e imagens? São muito mais, claro: fetiches da ingenuidade e fragilidade dos crentes, ferramentas da ganância sacerdotal e guerreira, ficções que ocupam o lugar da inteligência e ocultam a história tangível, humana. Para quem lê a História, todavia, são chaves preciosas, arqueologia, arte e retórica do mundo erigido nos últimos 5 mil anos, nosso breve hiato histórico. O portal mais famoso de Babilônia está hoje em Berlim, e era passagem de Ishtar.
Deusa do amor e da guerra, Innana dos súmerios (terceiro milênio a.C.), Ishtar acádia, Astarté fenícia, Afrodite e Vênus de gregos, latinos y nosotros, sus hijos. Estas, não têm armas, dobram Ares-Marte com sexo divino. O amor venceu a guerra, como sonham poetas e pintores desde sempre? Hoje, com o nome Babilônia, na civitas dei (cidade de deus) dos brasileiros (a tela noveleira), o amor trava outra guerra, como querem os crentes que vestem roupagem cultural de era anterior ao rei literato, Hammurabi. Há confusão de idiomas, entre dialetos arcaicos e atuais: em nome do "amor" fazem guerra, e sem combate o amor não avança. Triunfante, Ishtar tem a voracidade do sexo; no mais antigo épico conhecido, a saga de Gilgamesh, tenta transar com o herói, que a recusa, temeroso, e paga caro por isso. O ocidente cristão recusou Afrodite por muitos séculos, e até hoje pagamos alto preço, entre sonhos, desejos e o divã, marca central da história da cultura.
Produção e comunicação de símbolos, a cultura permite refletirmos sobre o mesmo e o outro ao mesmo tempo, em outro lugar. Ishtar de Babilônia, mas sua porta está hoje em Berlim; na Bagdá de Saddam, placebo da Babel antiga, há réplica do monumento surrupiado pelos alemães em 1930, e a marca de uma ferida geopolítica: a farsa está no local de origem, periferia, a verdade está no centro do mundo, metrópole europeia. Contentem-se os iraquianos com um simulacro do que já foi seu, a verdade perene está protegida. A estupidez de crentes com armas na Síria, todavia, destruindo cidades antigas e ameaçando patrimônios da humanidade, reacende a discussão, e marca pontos em favor do resgate, proteção e difusão dos acervos, prometido e praticado pelos museus europeus e norte-americanos. Questão complexa, em que a ética da UNESCO (preservem-se os acervos arqueológicos em seu local de origem, Carta de Veneza, 1967) é ironizada por iconoclastas. Querem o lucro certo do mercado negro (chinês, norte-americano e russo), saciar a iconofobia de sua paixão religiosa intolerante, e ferir o afeto que o mundo educado, a Europa em particular, dedica a este patrimônio.
Nosso vínculo com o passado, paternidade de nossos fundamentos, instituições e formas cruciais, o patrimônio vive sob a mesma ameaça do pai totêmico lido por Freud (1913), alvo da sanha contestadora e renovadora das novas gerações. Está sempre em risco, mesmo que tenhamos há muito aprendido a distinguir o que derrubar, o que preservar. Guardamos o que tem poder genético e as fontes de prazer e sabedoria, memórias de uma saga multimilenar, da humanidade e do planeta. Iconoclastas de todas as eras custam a perceber o patrimônio, e aprender com ele. Em hebraico, Bābili traduz-se pelo verbo bilbél, criar confusão, como no famoso mito da torre, narrado no Gênesis e pintada por Brueghel. Em nossa Babel Porto Alegre, o patrimônio vive acuado, atacado, sucumbindo, marca de uma confusão idiomática, em que uns falam em preservar o que importa e edificar com arte e ciência, outros preferem o dialeto dos negócios, trocar a alegria bela de um porto histórico por novas e confusas torres. Haja amor e haja guerra, para tentarmos vivermos bem entre tantas babilônias.
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