* Poeta, professor e tradutor
Estranho plebiscito! Na Grécia, todos são consultados para saber se querem ou não pagar a dívida. Entre SIM e NÃO, qual é a diferença? De um ou de outro jeito, a dívida terá que ser paga. Agamênon, o legendário comandante que liderou o ataque a Troia, consultou os comandados para saber se queriam ou não continuar a guerra depois de nove anos de combates infrutíferos. Venceu o NÃO de soldados exaustos. Ulisses deteve as tropas que se dissolviam, a guerra continuou até o incêndio da cidade inimiga.
Não se diminua a gravidade. Houve, na Grécia, governantes incompetentes e desonestos. Incorreram em gastos excessivos, fizeram compras ostensivas e desnecessárias, popularizaram-se com regalias irresponsáveis, mascararam orçamentos. Medidas severas são incontornáveis. O retorno a uma moeda nacional daria flexibilidade ao governo para administrar importação e exportação. A maior fonte de renda dos gregos é o turismo. Curiosos em conhecer o berço do Ocidente afluem de todas as partes do Globo com euro ou sem ele. Quem pagará os custos para produzir as novas cédulas? China? Rússia? A presença de ambos os países é sensível. Estariam em condições de aliviar a penúria?
Entenda o que levou a Grécia a chegar ao fundo do poço
Entenda por que o "OXI" grego não é um simples "não"
Crise é uma palavra grega, derivada do verbo krino, significa afastamento, julgamento. Os gregos vivem em crise desde sempre, expressam admiração uns pelos outros criticando. Homero critica os deuses, Hesíodo critica Homero, Tales critica o mito, Platão critica a democracia ateniense, Diógenes critica Platão... A crise é milenar. Sem crise, a vida não é grega. Crise é uma doença que os gregos nos legaram. A crise não nos rouba a alegria, é nossa maneira de sermos helênicos. A crise afasta, individualiza e une. A convivência política constrói-se assim. Entre o SIM e o NÃO, cabeças pensantes examinam propostas para sair do atoleiro.
A crise penetrou no sistema capitalista, hoje globalizado. A crise que abalou a prosperidade estadunidense no início do século 20 voltou a intranquilizar a imponente potência mundial. Em crise está a Rússia, em crise está o Reino Unido, em crise está o Japão. A inquietação não poupa a retumbante China. Em crise está o mercado mundial. Em crise vivemos nós. Doenças, fome e guerra devastam a África. Confrontos armados ensanguentam o Oriente Médio. A corrupção mina o Brasil. Somos sete bilhões em crise.
Tive o privilégio de visitar a Grécia - já em plena crise - há pouco tempo pela segunda vez. Estou empenhado na reedição ampliada de um livro meu, já esgotado, Literatura Grega. Acompanho a repercussão de tempos antigos sobre a Grécia de agora. Estive em Atenas e ilhas próximas. Interessava-me sentir a Grécia de nossos dias. A Antiguidade está presente em tudo: em monumentos, em museus, na Acrópole, em processo de laboriosa reconstrução, no humor homérico e socrático preservado em anedotas críticas de gregos jovens. Encontrei uma Atenas alegre, acolhedora, bem organizada. As manifestações que apavoram, transmitidas pela televisão, acontecem em áreas restritas sem molestar visitantes.
Marta Sfredo: Grécia vira calcanhar da Europa
Ex-presidente do Banco Central Europeu adverte para os riscos do 'Grexit'
A Grécia ameaça abandonar a comunidade europeia? A Europa é filha da Grécia. Seduzida por um sonho, Europa, uma jovem de seus 15 anos, filha de Agenor e Teléfassa, se perdeu no mar. A desaparecida deu nome a um continente inteiro. A arte e o pensamento gregos alimentam a Europa em todos os séculos. Como imaginar a União Europeia sem Grécia? Quem arrancará a Grécia de Europa? Angela Merkel e François Hollande não deixam. Sonhadores gregos foram engolidos pelo prático Império Romano e contaminaram irremediavelmente o corpo dos dominadores. Roma foi despedaçada. Os turcos sufocaram Bizâncio. A Grécia atravessou o Atlântico e nos faz sonhar. Monteiro Lobato encheu a cabeça das crianças de sonhos gregos. Entre o SIM e o NÃO, o sonho não pode morrer.
Desde os tempos homéricos, os gregos gostam de viver bem. O sistema capitalista é impiedoso, quem não trabalha não come. É a fábula da cigarra e da formiga. Os gregos sabem transformar tragédia em festa, como se vê no filme Nunca aos Domingos. Os trabalhos de Hércules nunca foram trabalho, não passam de competição esportiva. As formigas da União Europeia não estão dispostas a abrigar no inverno os despreocupados seresteiros helênicos. Conciliar trabalho e festa é preocupação de todos.
Andando por livrarias, despertou-me a curiosidade a quinta edição (2002) de um livro do cretense Mímis Androulákis, Skiés stin Athina ("Sombras em Atenas"). As sombras são de Marx, Nietzsche e Freud, que, reunidos na capital grega, arquitetam a construção do homem do século 21. Androulákis vê na tríade o florescimento do pensamento grego. Sonham com um homem universal, trágico, operoso e lúcido, homem no qual todas as fronteiras se apagam. Em meio a tantas desinteligências, queremos que o sonho de Androulákis se realize. Todos somos americanos (Obama), todos somos gregos, todos somos africanos, todos somos asiáticos. Tirania, imperialismo, fome, radicalismo, corrupção, pobreza, riqueza, guerra, racismo, exclusão, desemprego são problemas de todos. Assim pensa a mente global.