* Carol Bensimon é escritora, autora de Sinuca Embaixo D'água (2009) e todos nós adorávamos caubóis (2013). Escreve mensalmente.
Rua Barros Cassal, Porto Alegre, a casa rosa com uma lavanderia no térreo: ali funcionava o Garagem Hermética, o bar definitivo, o grande símbolo de um certo tempo em que a juventude (ou a parte outsider dela) cultuava a precariedade, o improviso, o desleixo. Estou falando dos anos noventa. Bar bom era música boa, cerveja ruim e parede ruindo. Noite boa era na sarjeta com os amigos bebendo vinho de garrafão. Talvez o espírito da época fosse uma mistura de pegada grunge com situação econômica periclitante. Kurt Cobain morreria em 1994 na distante Seattle, vencido pelo mercado, a mídia, a heroína, as multidões, mas aqui nós demoramos a perceber que os tempos iam mudar. Ainda parecia legítimo usar tênis sujo e jeans rasgado em 1997. Tênis sujo e jeans rasgado eram símbolos fortes, quero dizer, de um lado estavam os rebeldes, de outro as pessoas normais. E depois isso tudo acabou.
Acabaram os rebeldes e acabaram as pessoas normais. As pessoas normais agora podiam cometer seus "desvios" e ainda assim seriam aceitas. Aliás, os "desvios" viraram algo interessante. Publicitário, mas tem uma banda? Incrível, vá em frente, nós gostamos de profissionais completos, que transitam em vários mundos e trazem referências, que entendem o jovem, estão ligados nas tendências, sua banda não quer tocar na festa de fim de ano da agência? Enquanto isso, dos rebeldes foram tirados as causas e os ícones; não há contracultura possível quando algo que nasce espontâneo vai parar em uma vitrine da Renner em um tempo ínfimo.
Isso tudo aconteceu em algum ponto dos anos 2000, ainda que seja difícil dizer exatamente quando e como. Na música, as guitarras se limparam, o cuidado com o figurino voltou e, lá por 2004 - 2005, vimos surgir uma porção de grupos de um milhão de integrantes felizes cantando em coro. A primeira década de 2000 foi um pouco épica, cuidadosa, sofisticada. Atualmente, temos um monte de pastiches na cena do rock independente: pastiche de surf music, de big band, de country rock, de folk, de post-punk. Por mais estranho que pareça, não temos um pastiche de Nirvana.
A música, no entanto, é só uma parte da história toda (ou o lugar onde tudo começa?). Vivemos na era da fofura. Dos potes de cerâmica vendidos online. Por jovens e para jovens. O improvisado Garagem Hermética foi substituído pelo bar-inspirado-na-filmografia-de-Wes-Anderson. A cerveja ruim agora é cerveja-artesanal-com-um-rótulo-massa-feito-pelo-amigo-designer. Sentar na sarjeta só se for pra comer pastel vegano em um evento relacionado à retomada do espaço público. E o velho show ao vivo é o novo álbum muitíssimo bem gravado disponível no site da banda.
Provavelmente estamos melhor, mas o precário, a ingenuidade, o barulho ainda me dão uma certa nostalgia. Às vezes me lembro de meus pais contando como era difícil conseguir uma calça Lee em Porto Alegre no fim dos anos sessenta, a calça que todos queriam ter, e tenho a impressão de que boa parte das lembranças das pessoas se relaciona a obstáculos, empenho, insistência. "Era difícil achar tal coisa, mas eu consegui". Ou: "era difícil montar uma banda, mas eu consegui."
Então torço para que as coisas difíceis não acabem de vez.
Leia mais colunas de Carol Bensimon