Poeta. Argentino, traduziu para o espanhol autores brasileiros como Vinicius de Moraes e João Gilberto Noll
Há quatro anos, começou em Buenos Aires um silencioso processo judicial que hoje está alterando o humor das conversas na vida literária portenha. Faltam poucos dias para seu desenlace, e o processo já tem operado um tipo de milagre: fez com que os escritores de ficção, normalmente indiferentes ao discurso jurídico, ficassem interessados ou pelo menos curiosos em conhecer a lei. Talvez seja a última brincadeira do genial Jorge Luis Borges (1899 - 1987): rebaixar todos os seus colegas ao barro das questões civis e burocráticas, ficando ele sozinho com as altas disputas metafísicas. O fato é que, neste mundo corriqueiro no qual os prosadores argentinos contemporâneos vivem, há um jovem escritor acusado de "falsificar" Borges e que pode até acabar na cadeia.
A história, simplificada, começou com a viúva de Borges apresentando no ano de 2011 uma acusação contra Pablo Katchadjian, nascido em 1977. María Kodama, já conhecida e conhecedora dos tribunais (ela tem processado escritores e editores argentinos, espanhóis, franceses), achou que um livro de Katchadjian, El Aleph Engordado, cometia uma defraudação à propriedade intelectual (a nossa lei argentina não tem a figura do "plágio"). Com sua tiragem de 200 exemplares, El Aleph Engordado era uma reescritura ou paródia do clássico conto O Aleph, na qual o texto inteiro de Borges ficava acrescentado, quase em cada linha, com palavras saídas da imaginação do novo autor (adjetivos, metáforas, comparações). O acusado, na primeira instância, conseguiu convencer o juiz do caráter experimental do seu trabalho, feito sem má-fé, sem fins lucrativos e sem esquecer de mencionar o nome de Borges como "fonte" (embora, claro, sem a autorização da viúva). E, mesmo assim, na apelação feita por Kodama nos últimos dias, um novo juiz achou Katchadjian culpável de defraudação e embargou as suas propriedades (não as intelectuais, mas sua casa). O final do julgamento, nas próximas semanas, pode ainda resultar em prisão de um a seis anos para o escritor que parodiou Borges.
Além da situação particular do acusado, o processo é importante porque vai ter consequências no âmbito social, estético e literário, dependendo do desenlace do caso. Na verdade, a lei argentina é antiga (data de 1933) e foi feita, já naquela época, de jeito rápido e provisório (como reconheceu no Congresso e naqueles tempos o seu redator, Roberto Noble, depois fundador do jornal Clarín). É uma lei pensada para condenar a edição pirata de livros, a apropriação de textos sem mencionar o autor, e o copy & paste de artigos de um jornal para outro. Mas não é uma lei que considere tudo o que hoje chamamos de "intertextualidade", recurso que não é novo - muito pelo contrário, é coisa que sempre existiu, às vezes com outros nomes, como "paródia". No caso de Katchadjian, claramente não há defraudação nem plágio: ele não enganou ninguém. O que está em jogo é a defesa do direito das pessoas a parodiar obras literárias ou artísticas preexistentes.
No final do século 19, florescia em Buenos Aires um gênero teatral chamado sainete. Eram peças de teatro popular, cômicas, por vezes dramáticas, com personagens que costumavam ser tomados da vida real - um dos mais famosos era o "gaucho rebelde" Juan Moreira, uma espécie de cangaceiro das pampas. E às vezes acontecia que duas companhias de teatro estreavam ao mesmo tempo peças muito similares. O país ainda não tinha leis de proteção aos autores. Mesmo assim, os juízes tinham um critério simples e efetivo de resolução de conflitos. Eles achavam que parodiar não era uma forma de falsificação nem defraudação, exceto nos casos nos quais uma obra "tira parte do público de outra" que é contemporânea. Esses juízes e advogados poderiam dizer, hoje, o seguinte: não é possível "defraudar Borges" no século 21, porque ele é um escritor famoso do século 20. Qualquer paródia que façamos de Borges nestes dias não tira leitores dele. Só pode agregar novos.
O primeiro livro paródico publicado por Katchadjian foi o seu Martín Fierro Ordenado Alfabeticamente. Lá ele tomava a obra de José Hernández (1834 - 1886), nosso maior clássico poético, e colocava todos os versos em ordem alfabética. O resultado era simplesmente fascinante: novas juntas, novas "parcerias" entre versos, criavam passagens de sentido alucinante. Tivesse esse autor mantido sua tarefa paródica restrita a obras consideradas canônicas da literatura argentina, poderia ter "interferido" em outro clássico contemporâneo do Martín Fierro (1872): o poema El Fausto Criollo (1866). Que é a história de um gaúcho que entra, sem querer, em um teatro, e lá assiste à representação do Fausto de Goethe. Só que o tal gaúcho não conhece o conceito de teatro e acha que o que está vendo é real (o diabo, o pacto, a história toda de Goethe). Quer dizer: um dos grandes clássicos fundadores da poesia argentina já é, também, uma paródia. Com a justiça argentina atual, o Fausto Criollo seria condenado, e o seu autor, Estanislao del Campo (1834 - 1880), poderia conhecer a cadeia.
E eu diria ainda que El Aleph Engordado talvez não tenha, em termos estéticos, a potência que teve a reescritura do Martín Fierro pelo mesmo autor. Eu diria até que "engordar O Aleph" é bobo. Mesmo assim, quanto mais desconforme eu fico com o resultado de uma paródia, mais acho necessária uma mudança nas leis de propriedade intelectual em respeito ao direito universal à reescritura. Talvez eu esteja pensando em outros escritores que vão reinventar Borges, ou Arlt, ou Katchadjian. Escritores do futuro que eu gostaria de ver livres caminhando pelas ruas.