* Francisco Marshall é historiador, arqueólogo e professor da UFRGS. Escreve mensalmente.
O cantor bem que tentou manietar a liberdade de expressão para saciar sua obsessão de controle da imagem, mas perdeu mais feio que o Brasil diante da Alemanha, foi 9x0 no STF. Aparentemente, livramo-nos de ao menos uma chaga deste tenebroso 2015; prouvera se imolassem nesta corte outras chagas, inclusive aquelas que impregnam esta mesma corporação que ora executou o flagelo, quais sejam, o assombro da desigualdade (disnomia, perversão do nomos, negação da isonomia) e a excessiva cupidez de bens, quando a mera cupidez já é imprópria. Atenhamo-nos, todavia, ao caso da tentativa de censura prévia, pois ainda há cinzas no ar, e a chance de concluirmos o sepultamento desta ave de rapina abatida no centro de uma corte em Brasília.
Por trás deste intento, parece haver um fetiche e erros culturais. O fetiche diz respeito à meta maior de produtores fonográficos e de certo gênero de "artistas": a produção e o controle da imagem. Então o sujeito só pode ser fotografado de tal ângulo, e usando roupas de cores puras, entrando com pé direito, e nada se pode dizer dele que venha a ferir a imagem tão diligentemente construída e manipulada. Tal fetiche, de eficiência duvidosa, esbarra, porém, no fato elementar de que a imagem controlada discorda do fluxo natural da vida, seus acidentes, contingências, peculiaridades, as marcas da realidade com que cada um de nós deve se ver e que nos causam rugas e cabelos brancos, e mudam nossa maneira de sorrir, e que só esconderemos se tivermos medo de encarar as realidades da vida. Ademais, o fetiche tem efeito reverso: não encanta, mas concentra expectativas. Há doentes que querem ser Ken ou Elvis, mas querer consagrar um boneco manipulado é grau maior de psiquismo. A bela frase de Lacan é bom fármaco: sou o que não penso ser, penso ser o que não sou.
Entre os erros culturais, está o fato de negar a esfera pública, onde se projetam nossas imagens, somos percebidos, retratados, espelhados, e com isso transformados naquilo que define, segundo Aristóteles, o nosso ser: zoon politikón, animal político. Uma certa dimensão de nossa pessoa não nos pertence, o que o Estado deixa claro desde que nascemos; igualmente, a imagem projetada não pertence apenas ao sujeito da imagem, mas também a todos os que a percebem e ao meio social. Isso deveria ser considerado também diante do clamor de direitos de imagem, que por vezes perturba a cena social e jurídica. Eis a questão: a imagem projetada é da fonte, ou o meio em que ela se propaga e os outros sujeitos que a percebem também são parte constitutiva desta imagem? Descartadas as razões de segurança e a elegância com que se deve respeitar a vida privada, o princípio de defesa da imagem não deve prevalecer para as personalidades que realizam seu destino e lucros na esfera pública. A imagem é um bem social, e seu combate pertence ao campo da iconofobia e a outras histerias.
Outro erro cultural decorre de supor que devamos ser indiferentes aos cacoetes. O atleta do século, que tanta alegria e honra deu ao povo brasileiro, tem sua imagem definitivamente manchada pela péssima maneira com que tratou a demanda de reconhecimento de paternidade de sua filha; desconheço pessoa decente capaz de perdoá-lo por tal desumanidade, em um caso patético. Todavia, ele teve diversas chances de optar, e quando o fez, tomou rumo catastrófico, como um ator que se encaminha para fim trágico. É oportuno que possamos representar este destino e que todos consigam verificar, novamente à luz de Aristóteles, que a felicidade depende de boas opções em momentos dramáticos, e não, acrescente-se, de carisma místico ou de manipulações da imagem. Antes de tornar-se biografia, o sujeito realiza a sua vida, e é sobre este plano que deve dar o melhor de si e controlar seus atos. Não estamos diante do julgamento de Anúbis, onde nosso coração será pesado contra a pena de Maat (justiça), como criam os egípcios antigos, mas sim da vida como ela é e como ela pode ser, se conseguirmos a sabedoria para compreendê-la e bem conduzi-la.
P.S.: eu jamais lerei uma página sequer da biografia em litígio; antes reler Plutarco 30 vezes!
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