Ruas sem asfalto, ausência de serviços públicos essenciais e sensação de esquecimento são situações comuns na vida dos moradores próximos aos limites de alguns municípios gaúchos. Para se ter uma ideia do problema, o mais recente decreto-lei que fixa a divisão administrativa do Estado - mostrando onde termina uma cidade e começa outra - é de 1944. Depois, apenas foram aprovadas leis específicas para alguns municípios.
A Divisão de Geografia e Cartografia da Secretaria Estadual de Planejamento baseia-se nos mapas cartográficos do Exército, nas leis municipais, em imagens de satélites e, até, em levantamento no terreno com equipe especializada. Hoje, o departamento está com dez pedidos de identificação vindos de diferentes locais.
- Emitimos pareceres com a identificação, mas o que descreve o limite é o texto da lei que só pode ser aprovada pela Assembleia Legislativa - alerta a coordenadora da divisão, Laurie Fofonka.
O Diário Gaúcho percorreu oito cidades da Região Metropolitana nas quais a palavra "limite" gera dor de cabeça para moradores e prefeituras.
Decreto antigo e que não pode ser atualizado
Depois do decreto de 1944, que fixou a divisão administrativa do Estado, o quadro territorial gaúcho se modificou significativamente. Novos municípios foram criados, áreas foram desmembradas ou anexadas sem a devida atualização da legislação.
- No momento, há uma impossibilidade legal de proceder alterações de limites entre municípios, por conta da Emenda Constitucional
nº 15/1996 (a mesma que impede a criação de novos municípios) - explica Laurie.
A coordenadora relata que, entre as inconsistências mais encontradas, estão as estradas que mudaram de nome, as descrições confusas de limites e os erros de redação nas leis municipais.
- Um dos casos é o de uma lei municipal dos tempos da colonização, em que um trecho indicava que a divisão passava pela sombra de uma árvore - conta.
Quando nem a Secretaria Estadual de Planejamento consegue responder às questões, restam às prefeituras acordarem sobre o melhor caminho. Ainda há casos que só são decididos com a intervenção do Ministério Público, como a divisão do Morro do Paula.
Nas mãos da Assembleia
O secretário da Comissão de Assuntos Municipais da Assembleia Legislativa, Filipe Etges, explica que é quase impossível fazer um novo decreto-lei para alterar a divisão administrativa do Estado. O custo seria astronômico. É mais simples fazer alterações acordadas entre os municípios e possibilitadas por uma lei estadual de 2013:
- Desde 1996, o assunto está com a União, mas não há regulamentação.
Em Bom Retiro, um cemitério sem dono
Um cemitério no distrito de Bom Retiro, em Eldorado do Sul, tem sido uma dor de cabeça para a cidade e para a vizinha Guaíba. Ele está encravado exatamente no limite entre as duas cidades.
Por décadas, o distrito pertenceu a Guaíba. Porém, com a emancipação de Eldorado, passou a fazer parte do novo município. Na divisão de limites, o cemitério acabou esquecido. Hoje, não pertence a ninguém.
- Já conversamos com Guaíba, que está mais adiantada no processo da delimitação do território. Administramos o cemitério dentro do possível, por uma questão de respeito aos moradores. O problema é que, por lei, o município não pode trabalhar fora dos seus limites, correndo o risco de ser acionado pelo Tribunal de Contas - explica o secretário de Planejamento de Eldorado do Sul, Adelar Rodrigues.
Distância
Distante 40km do Centro de Eldorado, o distrito de Bom Retiro chegou a se chamar Bom Retiro do Guaíba. Quem vive no local, isolado entre estradas de terra e morros repletos de eucaliptos, se considera morador de Guaíba e até vota na cidade vizinha.
Morador da região há 27 anos, o comerciante Loredino da Silva,
51 anos, conta que o maior problema é a distância da área central de Eldorado. Recorda que, certa vez, acionou a Brigada Militar para uma ocorrência na região, e não foi atendido.
Pela distância e por ter estradas de difícil acesso, Bom Retiro enfrenta dificuldades até na hora de chamar o Samu. Nestas horas, Loredino faz as vezes de socorrista com o Zafira da família. O paciente sempre é levado ao hospital de Guaíba, distante 16km da região.
Confusão entre a Capital e Viamão
Quem vive no trecho da Estrada João de Oliveira Remião entre as estradas das Quirinas e São Caetano exige ser morador de Porto Alegre, apesar de a área pertencer a Viamão. O comerciante José Schmitt, 56 anos, é um deles. Ele se justifica dizendo que os hectares, no limite com a Capital, estão abandonados.
- Ligo para a Brigada de Viamão e me mandam ligar para a Restinga, em Porto Alegre. E vice-versa. O mesmo ocorre com o IPTU. Se eu quiser pagá-lo, preciso ir até a prefeitura de Viamão, pois neste ponto da cidade eles não entregam. Se fôssemos da Capital, teríamos prioridade - conta.
José baseia-se em sete antigos marcos de bronze, instalados ao longo da via em 1982 pelo governo estadual. Na época, foram determinantes para separar as duas cidades. Hoje, se perderam entre terrenos criados depois desta data e não são mais considerados.
Por ser uma área distante mais de 20km do Centro de Viamão e próxima de bairros populosos da Capital, como Restinga e Lomba do Pinheiro, a estrada ainda gera confusão nos que moram no local. O comerciante Cláudio Vicente da Silva, 66 anos, que o diga. Ele mora em Viamão, mas tem empresa em Porto Alegre. Para chegar até ela, basta cruzar a estrada.
- É uma confusão. De um lado da rua, minha luz é 220. Do outro lado, 110 - comenta Cláudio.
Porto Alegre de olho
Infraestrutura
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