Durante duas décadas e meia, João Verci dos Santos, 74 anos, se acostumou a viver com água acima da cintura dentro de casa toda vez que chovia forte. A família dele era uma das que sofriam historicamente às margens da Represa Lomba do Sabão, na Vila dos Herdeiros - também conhecida como Beco dos Cafunchos -, no Bairro Agronomia, Zona Leste da Capital. Depois da última grande cheia, em agosto de 2013, no entanto, a realidade dele e a de pelo menos outras 20 famílias mudou.
Foi quando o líder comunitário Jorge Leandro da Silva, 44 anos, tomou a frente e negociou com a prefeitura a transferência de todos para casas com aluguel social.
- Se não fosse pelo Jorge, não tinha rua, não tinha encanamento e a gente ainda estaria debaixo da água - resume Sandra Pimentel, que mora na vila há 15 anos.
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Ela é uma das que atualmente misturam o sentimento de gratidão com a angústia por não saber o paradeiro do líder comunitário. Na segunda-feira, completou um mês do desaparecimento de Jorge Leandro, desde que foi arrancado de casa por homens encapuzados que se anunciaram como policiais. Parecia um sequestro, mas nenhum contato foi feito com a família. Pode ter sido uma execução, porém, a polícia não encontrou sequer sinais do corpo dele.
Enquanto isso, as lutas por melhorias na Vila dos Herdeiros pararam.
- Nunca mais chamaram para reunião nenhuma, porque era ele quem tomava a frente e saía atrás dos benefícios para a nossa comunidade. Eu rezo muito para que ele esteja vivo. Nós precisamos dele - conta Sandra Pimentel.
A relação de amor de Jorge Leandro com a comunidade começou, formalmente, há cerca de dez anos, quando criou a Ação Social Comunitária Vila dos Herdeiros, mas já era o resultado de uma história bem mais longa.
- A relação dele com a comunidade é algo que ele sempre teve, como uma vocação - lembra o irmão, Marcos da Silva.
Segundo ele, tudo começou ainda quando eram crianças e foram morar no Bairro Agronomia. Naquela época, quando aconteciam as enchentes, ele saía para ajudar os vizinhos. Jorge Leandro tanto brigou que conseguiu fazer o município abrir a rua que hoje tem um pontilhão sobre o leito do Arroio Dilúvio. Depois, abriu mão de uma parte do terreno onde fica a sua casa para que se fizessem os trabalhos de abertura de dutos para evitar novas cheias.
- Ele sempre se doou muito sem receber nenhum retorno - diz Marcos.
Sua última empreitada aconteceu nas eleições do ano passado. Depois de dois anos e meio como motorista da Carris, se afastou para trabalhar na campanha eleitoral. Jorge ficou desempregado e, até o seu desaparecimento, seguia nesta condição, sem desistir dos planos assistenciais.
- Chegou a me pedir emprestado para conseguir levar doações a algumas famílias da Lomba do Pinheiro - comenta o irmão.
Foto: Marcelo Oliveira/Agência RBS
Um cara que compra as brigas
O protagonismo de amarrar uma corda na cintura e aventurar-se represa adentro para ajudar a salvar famílias ilhadas não rende só admiração ao líder comunitário. É do seu temperamento literalmente comprar as brigas da comunidade.
Foi assim que, no ano passado, teve um forte atrito com traficantes que atuam no Beco dos Cafunchos. Cansado da violência promovida pelos criminosos, ele tomou a frente de reivindicar a presença do policiamento no local. Seu último embate, no entanto, não foi com os criminosos. No começo do ano, quando o Beco dos Cafunchos virou foco de uma guerra do tráfico, o tema entrou em discussão na reunião do conselho popular da região. E Jorge Leandro não poupou críticas.
Ficaram registradas na ata da reunião as suspeitas do líder comunitário de que agentes da Polícia Civil "não prendiam os traficantes locais porque não queriam". Dizia saber de casos de extorsão praticados por policiais.
Nos primeiros dias depois do desaparecimento de Jorge Leandro, o caso foi apurado pela 21ª DP, que não chegou a evoluir em suas buscas. Logo, passou à responsabilidade da 1ª DHPP.
- Já fizemos uma série de buscas que não resultaram positivas, mas vamos fazer outras diligências e estamos ouvindo muita gente - garante o delegado Róger Bitencourt.
Ele conduz a investigação sob sigilo. Adianta somente que a apuração está evoluindo.
Filhos não voltaram ao local do crime
Desde a madrugada de 27 de março, a casa onde Jorge Leandro mora permanece fechada. Os dois filhos, de 19 e 15 anos, que estavam com ele no momento em que foi raptado, não conseguiram voltar ao local. Moram com a mãe em outro bairro.
A única exceção foi feita pelo irmão, Marcos. Ele acredita ser remota a possibilidade de ainda encontrar o líder comunitário vivo. Por isso, tratou de diminuir o sofrimento da mãe.
- Eu só entrei lá para recolher a maior parte das roupas dele. Doamos a quem precisa - diz.
O que a família não suporta é a absoluta falta de informações sobre o paradeiro de Jorge Leandro.
Naquela madrugada, um carro escuro com cinco homens, armados e encapuzados, parou diante da casa do líder comunitário. Os criminosos teriam gritado que eram policiais. Espiando pela janela, Jorge Leandro, como se esperasse por esse desfecho, teria avisado os filhos que teriam vindo buscá-lo. Tratou de esconder os dois filhos e não resistiu.
Antes de sair, os criminosos ainda teriam mandado que ele pegasse uma muda de roupa. O líder comunitário teria sido jogado no porta-malas do veículo e não foi mais visto.
/// Se você tem alguma informação que possa ajudar a polícia a esclarecer o crime, denuncie pelo 181.
*Diário Gaúcho