*Escritor, autor de "Machado e Borges".
Se o prezado leitor não é nativo da era digital, é bem provável que tenha de sua infância não mais do que poucas dezenas de fotos, e talvez menos ainda se tiver nascido antes da popularização das câmeras portáteis dos anos 1970. Machado de Assis, que viveu entre 1839, quando a fotografia ainda era embrionária, e 1908, quando o cinema já existia, tem sua imagem estampada em uma boa quantidade de fotos, 21, conforme o mais completo levantamento, em A Olhos Vistos: Uma Iconografia de Machado de Assis, de Hélio de Seixas Guimarães e Vladimir Sachetta (Instituto Moreira Sales).
Pois apareceu uma nova imagem com o rosto do maior escritor brasileiro. Como se pode ver aqui (ou neste site), uma multidão incontável foi flagrada em cerimônia pública, uma missa campal, em 17 de maio de 1888, apenas quatro dias após a assinatura da Lei Áurea, que extinguiu formalmente as normas que regulavam a escravidão no Brasil. Na ponta esquerda da foto, envolvidos por um cenário requintado, figurões do momento, tendo ao centro a princesa Isabel, que assinara a Lei. A dois passos dela, semi-encoberto, Machado de Assis.
A foto, devidamente revalorizada - ela já era conhecida e até mesmo figurava em livros -, repõe perguntas que não param de fazer sentido, de cobrar sentido. Em particular aquela que quer saber sobre a condição étnica do grande escritor. Machado afinal era negro? Se considerava negro? Militou a favor da abolição? Escreveu sobre a condição dos negros? Se omitiu?
Filho de um afrobrasileiro livre (e neto de escravos alforriados) e de uma açoriana pobre, imigrada ainda menina ao Brasil, Machado nasceu com a escravidão em plena força legal e econômica, no Rio de Janeiro, cidade que figura entre as três maiores de todo o mundo a contar com escravidão urbana em seu tempo. O futuro escritor nunca foi escravo, mas terá convivido cotidianamente com escravos, na casa-grande de sua madrinha, onde nasceu e cresceu, ou na rua. Tinha quase 50 anos quando acabou a escravidão, tendo assim visto ao vivo os efeitos das leis abolicionistas como a Eusébio de Queirós, 1850, que acabou com o tráfico legal, e a do Ventre Livre, de 1871.
Tendo na pele alguma tonalidade escura, que as fotos revelam e às vezes velam, terá sido alguma vez confundido com mulatos escravos? Não deixou isso escrito. Ele, que nos legou uma riqueza infinita de alguns milhares de páginas, em romances, contos, crônicas, poemas, críticas, silenciou sobre algum eventual sofrimento dessa ordem. Por quê?
Por que não fez de algum negro um protagonista de romance? Por que esperou a Abolição ter 10 anos já para lançar em livro um conto com o drama concreto de uma escrava, O Caso da Vara (a menina Lucrécia, 11 anos, bordadeira, "negrinha, magricela, um frangalho de nada, com uma cicatriz na testa e uma queimadura na mão esquerda"), que ao fim da história vai ser mais uma vez torturada? Por que apenas em 1906, a quase duas décadas da lei Áurea, é que apresentou ao mundo um conto espetacular e escabroso em sua violência contra os escravos, chamado Pai Contra Mãe?
Por que, nas crônicas que acompanham o cotidiano da sociedade brasileira, abordou a condição dos escravos e a luta abolicionista de modo tão enviesado? Por que escolheu a dura, travada e complexa ironia para escrever a famosa crônica de 19 de maio de 88, em que, dando voz a um personagem hipócrita, mostra que a Abolição não alterou quase nada do cotidiano de brutal opressão a que os escravos eram submetidos?
Perguntas sem resposta. Tendo experimentado uma ascensão social raríssima - de filho da pobreza a escritor aclamado como o maior de seu país já em vida, em posição social bastante confortável devida a seu trabalho na alta burocracia federal brasileira -, Machado sempre preferiu ser discreto, sutil ou mesmo ausente no debate público sobre a escravidão. O que não significa que a tenha apoiado, em qualquer momento. Por outro lado, parece certo que não tinha simpatias pela República e tinha afinidades com a monarquia; e ocorre que Abolição e República estavam de mãos dadas, então.
O tema de sua ascendência negra sempre esteve no horizonte. O amigo Joaquim Nabuco, em carta a José Veríssimo após a morte do escritor, observou: "O Machado para mim era um branco e creio que por tal se tomava". Na certidão de óbito, Machado figura como "branco". Em nossos dias, Harold Bloom, em Gênio, reconhece o valor superior da obra do "African-Brazilian" escritor Machado de Assis, tendo-o na conta de "the supreme black literary artist" até hoje.
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A foto reposta em circulação nos indaga ainda uma vez. Está se escondendo ou se mostrando aquele homem de quase 50 anos, já famoso? Estava feliz, aliviado, esperançoso pela libertação de seus contemporâneos? Ele e todos estão sérios na foto - posar para um fotógrafo era, para as antigas gerações, matéria de alta compenetração, porque o futuro os examinaria.
Enquanto isso, logo atrás do biombo, na extrema esquerda da foto (acima), uma senhora e uma menina, talvez sua filha, caminham, sem saber que fariam companhia para Machado, a princesa, militares amedalhados e gente graduada. Caminham em suas roupas de festa. Caminham, creio, com o coração leve.