Encravada entre o Palácio Piratini, a Assembleia Legislativa, a Catedral Metropolitana e o Teatro São Pedro, uma inusitada moradia chama a atenção de quem circula pela Praça Marechal Deodoro, no centro de Porto Alegre.
Em um canteiro de um dos pontos mais simbólicos da Capital, ao redor do monumento que dá nome à área verde - mais conhecida como Praça da Matriz -, um grupo de cerca de 10 pessoas, entre homens e mulheres, fixou residência. Há colchões, lonas, um sofá-cama, mesa, banco e cadeiras.
- Sempre tem gente morando na praça, mas nesse canteiro aí é a primeira vez. Antes tinha um grupo de adolescentes que ficou uns três, quatro meses. Agora são outros - conta o engraxate Claudiomiro da Silva, que trabalha na Matriz há 15 anos.
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Na manhã de terça-feira, pelo menos sete pessoas ainda dormiam sob uma frondosa árvore, cuja copa cobre o terreno. Ao pé de um dos colchões, um cusco se roçava no chão. O monumento ao Marechal Deodoro da Fonseca servia de suporte para um par de tênis, uma calça jeans e duas pequenas caixas de chá.
- Eles não incomodam ninguém, mas é desumano. Não tem como ficar indiferente - diz a especialista em direito público Luciane Scapin de Mello, que abordou a reportagem.
Natural de Cruz Alta, Luciane é moradora da Rua Demétrio Ribeiro e passa pela praça quase diariamente, a caminho do trabalho. Ela diz que a movimentação não é novidade, embora tenha se intensificado nos últimos meses. Acha que o "poder público devia atuar" para retirar os moradores do local.
Monumento ao Marechal Deodoro da Fonseca é utilizado como suporte de objetos
Foto: Adriana Franciosi, Agencia RBS
À frente da Catedral Metropolitana há dois meses, o padre Pedro Kunrath conta que as escadarias da igreja também servem de dormitório para algumas pessoas. Segundo ele, ao chegar no local, por volta das 6h30min, costuma abordar os moradores, fazer o sinal da cruz e "rezar um Pai Nosso" com eles.
- Dos que ficam na praça, não sei. Às vezes eu me sento ali antes da missa e eles me chamam de "Papa" - diz.
Pouco depois das 9h30min, um homem deixa a pequena aglomeração da Matriz de mochila nas costas. Passa pelo cercado que contorna o local e caminha até um dos bancos, onde pendura seus pertences.
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Conhecido como Rato entre os outros moradores, ele conta que sempre viveu na rua. Na praça, onde mora há cerca de um ano, trabalha como guardador de carros.
Segundo o homem, além do que ganha com o trabalho, há pessoas que ajudam os moradores, levando comida à noite. Já a prefeitura aparece pouco e, algumas vezes, tenta retirar os pertences dos moradores, segundo seu relato.
- Só chegam com caminhão, para tirar as coisas. Ajudar que é bom, nada - desabafa.
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Rodrigo, 25 anos, não trabalha. Ele conta que foi morar na rua depois da morte da mãe, aos 15 anos. Chegou a viver por dois anos na orla do Guaíba, onde "apanhou muito da polícia".
Há cerca de um ano, segundo seus cálculos, dorme na Matriz. Ele acredita que o envolvimento com as drogas - é usuário de crack, cocaína e maconha - o impede de mudar de vida.
- Não queria ser assim. Eu uso (drogas) porque não tenho nada a perder - conta.
Técnica de abordagem social da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), Patrícia Mônaco diz que uma equipe realiza abordagens na Praça da Matriz semanalmente. De acordo com ela, atualmente, o grupo "fixo" conta com cerca de oito pessoas, a maioria deles há muito tempo em situação de rua.
- São pessoas que têm uma relação de reconhecimento entre si há bastante tempo. Não é que eles não tenham intenção de sair da rua. É que não existe nenhuma motivação. É muito mais difícil - explica.
A oferta de alimentos e trabalho - vários atuam como guardadores de carro - na Matriz são os principais atrativos. Além de receber auxílio da vizinhança, os moradores recebem visitas de vários grupos organizados que fazem ações voluntárias para levar alimentos e roupa.
Para a técnica da Fasc, as "aglomerações", como a do canteiro, ocorrem por uma questão de sobrevivência. Além de se protegerem, os moradores rateiam alimentos.
Apesar da forte relação dos moradores de rua com a praça, a profissional conta que há casos de pessoas que deixaram o local. Dois deles atuam como facilitadores sociais - pessoas que viveram em situação de rua e auxiliam a Fasc nas abordagens - e um casal que vivia junto ao grupo, atualmente, está no aluguel social.
- Não partiu de um desejo deles, mas da construção de um trabalho, motivado pela gravidez da menina. É um caso positivo - conta.
*ZERO HORA