Na solidão de um navio enferrujado, atracado num trecho do cais de Porto Alegre, o ex-pescador e ex-marinheiro Jair Martins de Freitas, 58 anos, vive embarcado 15 dias por mês. A rotina dividida apenas com o vira-latas Marujo é o saldo de quem para não ficar longe da água escolheu, há oito meses, tornar-se vigia daquele que considera como segunda morada.
Dentro do navio cargueiro Itajaí, com mais de 70 anos, ancorado entre um clube náutico e o Batalhão Ambiental, Jair passa os dias entre longos corredores, iluminados apenas pela luz solar ou pela inseparável lanterna, e a proa, cuja finalidade atual é manter ativa uma colmeia de abelhas. Funcionário da empresa Petrosul, proprietária do navio, Jair abandonou a função de marinheiro quando os joelhos gritaram depois de quase 50 anos lidando dentro d'água. Desde então, há oito meses, tornou-se vigia de navio.
- Não podia mais fazer a estiva (carregar o barco). Por isso, fui obrigado a parar para não atrapalhar os colegas. Para não ficar longe da água, me ofereci para cuidar dos navios antigos - conta.
Morador de São Lourenço do Sul, Jair não pensou duas vezes quando surgiu a oportunidade de cuidar do velho Itajaí nas margens do Guaíba, a 201 km de casa. Como um velho marinheiro, fica sete dias embarcado e outros sete com a mulher, em casa. Casado há 33 anos com a bancária aposentada Izete Virgínia de Freitas, 54 anos, garante que ela não reclama das longas ausências. Nem os filhos, o jornalista Diego de Freitas, 28 anos, e a geógrafa Natália de Freitas, 25 anos.
- Já fiquei até 20 dias embarcado quando era pescador. A exigência da minha nova função é muito fácil para eles.
Jair na solidão do navio
Foto: Mateus Bruxel
Assista ao vídeo:
"Não quero sair desta lida"
Neto e filho de pescador, Jair criou-se na Lagoa dos Patos e admite não ficar longe da água. Pelo menos duas vezes por dia, mesmo atracado, sente o balanço do navio quando as outras embarcações passam pelo Guaíba e causam repuxo. Na quartinho improvisado onde um dia foi uma das cozinhas do navio, apenas uma televisão e um ventilador ligados à energia elétrica que vem do clube ao lado são usados por Jair.
No silêncio diário, quebrado apenas pelo som ensurdecedor dos aviões que cruzam em direção do Aeroporto Internacional Salgado Filho ou pelo rádio de pilha sempre conectado no futebol, o vigia varre os corredores enferrujados, prepara peixe frito no almoço e confere as mais de 15 amarras responsáveis por manter o navio atracado. Mas é no final da tarde, da proa do Itajaí, que Jair vive o melhor momento do dia: acompanhar o entardecer na companhia das garças do outro lado do Guaíba.
- Aqui é a minha casa. Quando estou lá (São Lourenço do Sul), estou louco para voltar. Adoro isso aqui - garante.
Quando questionado se pretende deixar a função em breve, Jair responde rápido:
- Sou um cara que não pode ficar longe da água. Me sinto bem. Não quero sair desta lida. Nasci na água e vou morrer na água. Fora de um navio me sinto um peixe fora d'água.
Jair caminha pelos corredores escuros do navio
Foto: Mateus Bruxel
Itajaí tem história
A aparência de abandono da embarcação que serviu como cargueiro da empresa, transportando óleo entre Porto Alegre e Rio Grande, esconde parte da história do navio que serviu à marinha norte-americana durante a Segunda Guerra Mundial, entre 1939 a 1945, segundo conta um dos diretores da Petrosul, Alberto Bins Difini. Por uma questão histórica e, principalmente, econômica, o Itajaí é mantido sob os domínios da empresa ao invés de ter como destino o ferro-velho. Alberto ressalta que o navio é considerado reserva técnica da empresa.
- Mesmo em obsolescência comercial, fora de serviço, a chapa de aço não se perde e pode ser utilizada para erguer um novo navio. Com o casco, economiza-se até R$ 5 milhões na construção. Um novo custa entre R$ 15 e R$ 20 milhões - explica.
Jair na solidão do navio
Foto: Mateus Bruxel
Sobre o interesse de Jair em continuar cuidando do navio, Alberto conta que outros ex-marinheiros também atuam na mesma função em outros cais. Ele reconhece a dedicação daqueles que não conseguem se afastar de uma missão.
- São como "leões sem dente". Acostumados à caçada diária, não conseguem se afastar da função mesmo quando já dedicaram uma vida à função. No caso de Jair, ele poderia escolher ficar em casa, fora da água, mas isso seria como lhe tirar a vida - acredita Alberto.
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