* Professor Adjunto do Instituto de Artes da UFRGS
De Florianópolis, em postagem no Facebook, uma ex-aluna comenta a sorte de ter estudado com Maria Lúcia Cattani, a Dudu:
"Hoje, mais do que nunca, queria estar naquela enorme sala do 5º andar, esperando-a chegar - uma das pessoas mais extraordinárias com as quais já aprendi, uma das pessoas mais apaixonantes com as quais tive a honra e a felicidade de conviver".
Um ex-monitor, que acompanhou Maria Lúcia nas aulas de gravura do Instituto de Artes (IA) da UFRGS, também faz referência a esse espírito apaixonante - vivo - que a professora fazia circular pela sala; ela encarnava, segundo ele, a própria ideia de "energia contagiante".
Outro ex-aluno oferece um exemplo da generosidade da artista: em um encontro com Maria Lúcia, há pouco mais de um ano, ele demonstrou interesse por uma série de pinturas que ela vinha expondo. Meio sem aviso, no meio da conversa, Maria Lúcia deu as costas e saiu. Reapareceu dali a pouco. Tinha ido até o carro buscar um catálogo para presentear ao jovem.
Do Rio, um artista de projeção nacional que nem usa o Facebook pede emprestado o login de sua mulher. Quer reportar os primeiros encontros com Maria Lúcia, ainda nos anos 1980, e sublinha a afetuosidade que sempre enxergou na amiga:
"A informação do falecimento de Maria Lúcia Cattani, quase inacreditável, nos deixou chocados e entristecidos. Sua imagem sempre alegre, delicada e de intensa vivacidade contrasta com a notícia de sua morte precoce".
Maria Lúcia Cattani faleceu na semana passada, em Porto Alegre, aos 56 anos, em decorrência de um câncer. Ela tinha descoberto a doença havia pouco mais de um ano, logo depois de ter se aposentado como professora do IA.
Em um grupo de e-mails, semana passada, um colega procurou sintetizar a tristeza que passou a acompanhar aquela turma de professores:
"Sinto que algo essencial está faltando ao nosso redor, que o ambiente foi mexido, alterado. E cada um de nós sabe que não está sozinho nesse sentimento de extrema consternação".
Depoimentos como esse, e haveria muitos outros, ajudam a fixar uma percepção comum sobre a artista e professora nascida em Garibaldi. Era doce e gentil, atenta e atenciosa. Maria Lúcia tinha sempre uma nota animada na voz, o espírito alegre e cordial. Não que tivesse o riso fácil, era antes um sorriso sereno, apaziguador e apaziguado. Procurava encorajar os alunos: o olhar agudo conseguia encontrar o que dava para salvar em uma gravura que ia ficando ruim, mas sabia rir junto quando já não dava para salvar mais nada.
Também fui seu aluno. Lembro que ela parecia muito sincera em seus incentivos. Ficava de fato animada com a curiosidade dos alunos e ainda mais animada quando eles procuravam experimentar, se arriscando. Quando, muito tempo depois, participei de uma exposição na Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, redescobri o quanto Maria Lúcia sabia ser parceira nos questionamentos de pesquisa. A exposição reunia artistas, que apresentavam seus documentos de trabalho, e teóricos, que apresentavam trabalhos de artistas sobre os quais pesquisavam e a documentação, tanto dos trabalhos quanto das pesquisas. Decidi mostrar o que acontecia quando eu cumpria as instruções elaboradas por uma dupla de artistas sem que eles nem soubessem que eu me dedicara a cumpri-las. Segundo os comandos, eu devia "atacar" um determinado livro: riscar, rasgar, colar e esfregar no chão algumas de suas páginas. Documentei essa ação com uma série de fotografias e apresentei o próprio exemplar do livro "atacado". A documentação ficou muito boa, graças à ajuda de um amigo fotógrafo (profissional) e de um professor artista (hábil na montagem). Houve quem torcesse o nariz: estava tão bom que parecia um "trabalho", uma "obra". Maria Lúcia foi a única pessoa que pareceu realmente interessada em discutir o que havia acontecido. Veio me procurar e perguntou: era para ser um trabalho? Mas poderia ser? Ou não? Quem era o autor? Onde eu achava que "estava" o trabalho? Era um problema a documentação ter ficado bonita? Eu não tinha respostas muito firmes; na verdade, as minhas perguntas eram as mesmas que as dela, mas ela vibrava com cada pergunta, e também não tinha respostas concretas. O que ela tinha era vontade de saber - e um grande entusiasmo.
Comentário de outra professora naquele mesmo grupo de e-mails:
"Os que conviveram com a Dudu e com suas convicções diante da vida a da arte sabem das lições que aprendemos e que temos a missão de levar adiante!".
Como artista, Maria Lúcia fez pintura, livros de artista e vídeos, mas se destacou sobretudo na produção de gravuras e em seus desdobramentos. Tinha um trabalho ao mesmo tempo forte e delicado, sensível e rigoroso, e que se erguia justamente a partir de uma estimulante série de paradoxos.
Com pleno domínio da técnica de gravura, Maria Lúcia empenhou-se em subverter as particularidades essenciais dessa categoria (gravura, grosso modo, é a arte em que se fixa uma imagem sobre uma matriz, como madeira ou metal, para depois transferir esse desenho para outro suporte, quase sempre papel). A gravura de Maria Lúcia justamente colocava em xeque questões como a possibilidade de impressão e reimpressão, a relação entre matriz e cópia, o original e o único, o gesto, o corte, a incisão.
Em seus trabalhos mais conhecidos, ela carimbava milimétrica e obsessivamente um mesmo quadradinho, com as mesmas pequenas linhas, tudo igual mas tudo diferente, com sutis mudanças de cor e de tom, de pressão e impressão. Ela cortava para tornar mais leve. A precisão matemática se convertia em beleza. Mais do que uma partitura, menos do que um alfabeto, oferecia uma melodia quase minimalista, o acúmulo e a repetição fazendo aflorar a grandeza dos pequenos gestos. Feito um sorriso sereno.