"O mundo é dos vivos/O mundo é dos bancos/E os bancos/Dos mendigos", canta Nei Lisboa em Produção Urgente. Quando a canção foi lançada, em 2001, a Grécia recém havia ingressado na zona do Euro, e era preciso ser poeta para associar bancos a mendigos. A economia mundial vivia um período de expansão, com o florescimento de empresas baseadas na internet e o início da gestação da primeira geração chinesa de bilionários. Seria necessário avançar mais seis anos milênio adentro para que a quebra do banco nova-iorquino Lehman Brothers inaugurasse uma nova era de incerteza.
A crise de 2008 pode ser traduzida numa imagem crua: da noite para o dia, US$ 2 trilhões (valor equivalente à metade do orçamento público americano proposto para este ano) viraram fumaça. Em lugar do desprezo pelo risco e da prodigalidade do início da década, sobreveio a recessão. Países que haviam sido sinônimo de bem-aventurança, brindados com crédito e valorização de ativos, transformaram-se em bolas da vez: Islândia, Irlanda, Espanha, Portugal, Grécia.
O sortilégio grego foi agravado pelas peculiaridades do país. A admissão da Grécia na zona do euro, que não ocorreu sem temores e resistências, foi saudada pelos apologistas como exemplo da missão redentora do bloco comandado pela Alemanha. Afinal, o país tinha um passado de ocupação (pela Wehrmacht, durante a II Guerra Mundial), guerra civil, rupturas institucionais e ditadura. O ingresso na Comunidade Europeia (a partir de 1992, União Europeia) e na zona do euro robusteceu o lastro democrático do Estado grego. Mendigos recém-chegados ao banquete, os gregos beneficiaram-se de um ingresso inédito de capitais, de um boom imobiliário e de acesso a programas de financiamento dos novos parceiros ricos. Por outro lado, tornaram-se consumidores ávidos de bens alemães e franceses.
O baque do final da década passada fez da Grécia o palco de um experimento ousado. Em troca de providenciais programas de resgate aos bancos gregos (o socorro de 2012 totalizou 240 bilhões de euros, o maior da história financeira), destinados a garantir o pagamento da dívida aos credores europeus, Atenas comprometeu-se a adotar um plano de ajuste que previa privatizações e demissões de servidores em larga escala, cortes de salários e de pensões, extinção de órgãos e desativação de serviços. O país mergulhou fundo na recessão, e, em que pese uma retomada dos sinais vitais no ano passado (a economia cresceu 0,7%, ainda que esse movimento tenha sido neutralizado pela queda média de 1,9% dos preços), deu a vitória nas eleições do último dia 25 ao único partido que se posicionou categoricamente contra o acordo de 2012: Syriza, uma agremiação de extrema-esquerda. O novo governo grego arrebanhou apoio popular em países como a Espanha, na qual o partido Podemos reuniu no último dia 31 de janeiro milhares de manifestantes em Madri no que chamou de "A Marcha da Mudança", conclamando os espanhóis a seguir o exemplo dos gregos e renovar sua classe política.
- A reação dos gregos é política, ou seja, relacionada com a defesa, pelos indivíduos, de sua forma de sobrevivência. Não se trata de discutir se é romântico ou não pedir a mudança da política de austeridade. O problema é que o pessoal não consegue mais viver sob esses princípios. Eles foram recusados pelos cidadãos - afirma o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda.
No terreno do pensamento econômico, a eleição de Syriza representa um questionamento a uma ideia que se tornou sinônimo de espírito do tempo: a de austeridade. Assim tem sido chamada a tese de que corte de gastos e enxugamento da máquina pública - o popular aperto do cinto pelos governos - são a única política disponível para se tirar um país da recessão. Na arena do debate público, esse entendimento é tão difundido que serve até mesmo para apresentar ideias que sustentam o contrário. Ao apresentar a edição brasileira do livro A Europa Alemã (Paz e Terra, 2015), do sociólogo alemão Ulrich Beck, por exemplo, a economista Mônica de Bolle definiu a política de austeridade germânica como "a única saída possível para evitar o desastre financeiro que pairava sobre o Velho Continente em 2010 e boa parte de 2011". A opinião do autor do livro, que morreu em janeiro, é oposta. "Na verdade", escreve Beck na página 110, "está na hora de virar o jogo: não precisamos mais de bailouts (injeções de liquidez) para os bancos, e sim de um mecanismo de salvação social para a Europa das pessoas, dos indivíduos".
Políticas pontuais de austeridade sempre foram alvo de críticas, seja pela escola keynesiana (do britânico John Maynard Keynes, secretário do Tesouro no entreguerras e um dos arquitetos da ordem econômica de Bretton Woods), seja por marxistas. Ainda assim, como notam alguns analistas, durante muito tempo a ideia geral de austeridade tornou-se popular entre indivíduos, partidos e governos de todos os quadrantes políticos. Para alguns autores, como o cientista político Mark Blyth (leia entrevista aqui), a explicação é que a austeridade pertence à categoria das "boas ideologias". Qualquer família sente na pele as consequências de um orçamento doméstico em que os gastos são maiores que as receitas. Quando há oferta de trabalho em abundância e os preços estão estabilizados - segundo Keynes, a melhor oportunidade para se aplicar políticas de austeridade -, o problema dificilmente se manifesta. Em tempos de recessão, porém, quando a atividade econômica se desacelera, o aperto do cinto pelo Estado pode ter efeitos ainda mais nocivos.
- As decisões das autoridades europeias são destinadas a tranquilizar os bancos, a provar ao sistema financeiro que os Estados vão pagar suas dívidas. De fato, não há preocupação com a demanda, como nos Estados Unidos. Da parte dos americanos, a preocupação é sustentar a economia por meio de uma política forte de redução de juros por parte do Federal Reserve (banco central americano) e de déficit orçamentário forte pelo governo. Na Europa, a inflexão é distinta. A imprensa europeia tem notado que a política europeia é o contrário da americana. Em vez de adotar o mesmo caminho, a decisão do Banco Central Europeu de quarta-feira (de suspender o financiamento aos bancos gregos) faz o contrário. Essa é uma medida contra o governo de Syriza - afirma Gérard Duménil, professor de economia na Universidade de Paris-V e autor de A Crise do Neoliberalismo (Boitempo, 2014).
O economista britânico Mark Weibort também questiona a política do BCE:
- A decisão (de quarta-feira) é hostil e arrogante. Eles não têm necessidade de suspender o crédito a taxas menores para a Grécia, e não há razão legítima para isso. E eles fizeram isso várias semanas antes de o acordo de empréstimo expirar. Assim, esse é um movimento agressivo, que faz o mercado de capitais na Grécia tremer. É como dizer ao novo governo: "Façam o que quiserem, e nós destruiremos sua economia".
Diante desse quadro, uma pergunta se impõe: o que acontecerá com a Grécia? A maioria dos economistas visualiza dois caminhos: um recuo do novo governo grego ou a saída do país da zona do euro e, provavelmente, da União Europeia. Nas próximas semanas, haverá uma sucessão de reuniões difíceis entre o gabinete de Alex Tsipras e as autoridades de Bruxelas e Berlim. O pano de fundo será dado por movimentações no mercado. Na sexta-feira, a agência de avaliação de risco Standard & Poors rebaixou a nota da dívida da Grécia de B para B-.
- Nós, economistas, ficamos receosos de fazer previsões, porque esse processo é eminentemente de natureza política. Em primeiro lugar, não houve até o momento instabilidade suficiente nos mercados para afrouxar o coração dos alemães e do BCE. A negociação grega vai ser muito dura. Angela Merkel (chanceler alemã) já disse que uma saída da Grécia da zona do euro não será catastrófica. A economia grega é pequena. O temor seria a contaminação para outros países, como Espanha, Itália e Portugal. Neste momento, a vida será dura para os gregos. Agora, a política é algo sempre em aberto - afirma André Cunha, professor do Programa de Pós-graduação em Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.