* Historiador, arqueólogo e professor da UFRGS. Escreve mensalmente no PrOA
Que palavra pode ser mais filosófica do que heteronomia, palavra grega inventada por um filósofo alemão? Os gregos examinaram muitas variantes de nomos (lei, convenção), por meio de prefixos e instituições. A mais antiga, disnomia, deplorada por Hesíodo (séc. 7º a.C.) como filha de Éris (disputa), um estado de deformação legal, em época de grande crise social. Sólon de Atenas lutou pela eunomia, a boa ordem legal visada em suas reformas para Atenas (594 a.C.). Já o regime democrático, de índole geométrica, era chamado isonomia, a simetria diante da lei. Tucídides, em uma de suas páginas mais perturbadoras, descreveu como anomia o estado de caos e devassidão vivido em Atenas quando da peste que devastou a cidade no início da guerra do Peloponeso (431 a.C.). Foram os historiadores do século 5º a.C., Heródoto e Tucídides, que formaram a palavra autonomia, pensando em Estados ou indivíduos que vivem de acordo com suas próprias leis. Atenas e Esparta disputavam hegemonia, e muitas cidades eram obrigadas a adotar a constituição democrática imposta por Atenas, ou seguir o modo oligárquico de Esparta. No mundo clássico, a autonomia tem sentido político, e não se aplica às relações entre homens e deuses. Nomos, disnomia, eunomia, anomia, autonomia. Os gregos não viviam sem esclarecer os fundamentos e pactuar com clareza a norma política.
Immanuel Kant (1724 - 1804) retomou a palavra autonomia, dando-lhe sentido ético. Para o filósofo de Königsberg, autonomia é a liberdade moral de uma consciência que se determina por princípios examinados pela reflexão, em concordância com leis morais universais. É condição de liberdade, e a ela se opõe a heteronomia, a sujeição a regras provindas de um terceiro (heteros, o outro), seja ele o Estado ou a "divindade". Liberdade e servidão podem ser descritas em termos de autonomia e heteronomia, palavra criada por Kant na Crítica da Razão Prática (1788). Naturalmente, o destino maior visado pela filosofia é a liberdade e a autonomia, corolários da condição humana e da sociedade emancipada.
Cornelius Castoriadis (1922 - 1997) retomou a palavra autonomia para pensar a democracia (clássica e moderna), praticada por comunidades cientes de sua qualidade como autoras de seu destino, em oposição às regidas por direito divino, por leis ancestrais ou pelo determinismo histórico (regimes totalitários); filósofo da autonomia, Castoriadis traz do mundo grego o gérmen da invenção política, que ele disseminou inclusive em Porto Alegre, nas conferências que aqui proferiu em 1991, na aurora do orçamento participativo (disponíveis em caosmose.net/castoriadis/). O filósofo Marcel Gauchet (1946) preserva estes conceitos para pensar um dos temas fundamentais da atualidade, a relação entre religião e democracia. Os princípios da autonomia e da heteronomia são ética e politicamente excludentes, pois ao se aceitar uma ordem "divina" ou a tradição como norma, a liberdade histórica é imediatamente suprimida, e vilipendiada a autonomia, em prol de uma fonte inverificável e irresponsável.
Deste quadro emerge a conclusão necessária de que os regimes democráticos devem ser laicos e manter vigília contra as pretensões políticas religiosas, de tipo heteronômico. O caráter laico do Estado destina-se não a agradar a ateus e agnósticos, mas a garantir a liberdade de todos, contra violações e usurpações. Em um país acossado por bancada evangélica, a luta pela autonomia equivale à defesa do fundamento do Estado de Direito. Mas não se trata apenas desta ameaça evidente; contra o Brasil há o lastro de 400 anos de Estado teocrático e a pretensão da Igreja em equiparar-se ao Estado, naturalizando-se como fundamento. Assim como o presidente da Câmara, que ora puxa orações no Congresso e usa crença religiosa para tentar bloquear a história, aqueles crucifixos nas cortes e o assento da CNBB na Comissão Nacional de Saúde deixam claro que falta muito para termos a felicidade e a liberdade da autonomia, mas a luta continua!
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