Há cerca de 30 anos, a tensão entre sunitas e xiitas, os dois grandes ramos do Islã, deixou de ser objeto de interesse de um punhado de estudiosos e passou a fazer parte do noticiário. Foi nos últimos meses, porém, que esse duelo tão antigo como violento passou a constituir um elemento-chave da situação política do Líbano ao Bahrein, do Iêmen à Síria - ou seja, da parte mais antiga e rica do mundo árabe. Na entrevista a seguir, o especialista em história islâmica Suleiman Mourad aborda alguns dos aspectos centrais do conflito - as origens, as características dos dois grandes e multifacetados campos em luta e as formas contemporâneas desse enfrentamento. Professor de Religião no Smith College, em Massachusetts, Mourad nasceu no Líbano e é autor, entre outros, de Antigo Islã entre Mito e Realidade.
Leia a íntegra da entrevista de Suleiman Mourad no blog Olhar Global
Estamos acostumados a ler e ouvir que a divisão entre sunitas e xiitas está relacionada a uma disputa pela sucessão de Maomé no século 7, mas há também indícios de que essa ruptura vai muito além de uma disputa comunal, política ou religiosa. Como o senhor aborda esse problema?
Concordo que essas questões são muito complicadas. Não podemos tentar respondê-las simplesmente nos concentrando em um único aspecto.
A divisão entre sunitas e xiitas tem uma longa história. De fato, começou no segundo exato em que o Profeta Maomé morreu. Mas devemos ser cuidadosos, porque no início não havia sunitas e xiitas como os entendemos hoje ou como eles passaram a ser definidos por volta do século 9. Havia seguidores frouxos dos dois grandes campos, e gradualmente cada lado se desenvolveu para se tornar o que chamamos de sunitas e xiitas. E há questões adicionais que contribuíram para criar outros problemas entre as duas grandes comunidades ao longo dos séculos. Assim, focar no período moderno é perder de vista o quadro maior.
No Brasil, os termos "xiita" e "xiismo" são aplicados a correntes de extrema esquerda em contraposição à esquerda moderada. É uma consequência da Revolução Iraniana, durante a qual a visão do Islã apresentada pelo aiatolá Ruhollah Khomeini era vista como muito estrita. Muitos ficariam surpresos com a maneira como os xiitas iranianos encaram a religião, de forma muito diferente da de Khomeini. Essa ideia do xiismo como uma forma estrita e radical do Islã é comum?
De maneira geral, e falando essencialmente de uma perspectiva estrangeira, não. Os xiitas foram, em geral, uma minoria no mundo muçulmano. E ainda que, a certa altura, aproximadamente entre os séculos 9 e 11, eles tenham sido politicamente poderosos, não se pode dizer que suas visões, sua política ou sua teologia estivesse associada com radicalismo ou militância. E o mesmo se aplica, no mais das vezes, aos sunitas.
O que ocorre é que a Revolução Iraniana criou esse tipo de impressão no Ocidente - de que o xiismo é uma seita muito radical. Muitos começam pensando assim, e as ações do centro teológico iraniano e também do Hezbollah (milícia libanesa apoiada pelo Irã) no Líbano não ajudam a melhorar essa visão. O Hezbollah é uma organização terrorista envolvida em práticas bárbaras em sua própria comunidade, mas que também, sob o disfarce da luta pela libertação do sul do Líbano, apoiada por todos, cometeu crimes contra a humanidade naquele país e, agora, na Síria. Isso não ajuda a dar uma visão melhor dos xiitas, mas, no início, essa não era a intenção de Khomeini e da Revolução Islâmica.
A intenção de Khomeini era criar uma espécie de movimento pan-islâmico de libertação, algo similar, eu diria - e compreendo as tremendas diferenças - ao que Ernesto Che Guevara pensava em fazer na América Latina: unir o povo numa luta comum contra um inimigo comum. E Khomeini queria ir além do xiismo, não queria se restringir aos xiitas. O problema que frustrou os objetivos iniciais foi a Guerra Irã-Iraque. Essa guerra cimentou no mundo islâmico a noção de que sunismo e xiismo não eram compatíveis.
Qaaba, local central de peregrinação na cidade sagrada de Meca. Foto: Fayez Nureldine/AFP
A Revolução Iraniana causou inicialmente uma boa impressão entre os sunitas?
Quando a Revolução Iraniana ocorreu, em 1979, havia muitos sunitas no Egito, no Líbano, na Síria, na Nigéria positivamente impressionados com o fato de que os xiitas do Irã tinham sido capazes de derrubar um ditador pró-ocidental e assumir o poder. E se você comparar isso com a moderna história do sunismo, eles não foram capazes de fazer algo semelhante. Para onde você olhar, os sunitas foram incapazes de produzir algo estelar como a Revolução Iraniana. Ela deu aos sunitas uma espécie de modelo a imitar, uma revolução em nome do Islã que tentasse derrubar um ditador pró-ocidental ou socialista.
Mas a Guerra Irã-Iraque forçou todos os lados a pensar que o que contava era sua própria seita, dando início à alienação dos dois grupos. Dessa maneira, sim, a disputa entre sunitas e xiitas começou nos tempos do Profeta Maomé, mas ficou adormecida ao longo de diferentes episódios da história islâmica e foi atualizada pela Guerra Irã-Iraque nos anos 1980.
A Guerra Irã-Iraque forçou todos os sunitas, mais do que em qualquer outra situação, a pensar em termos de como se unir a outros sunitas, e ensinou os xiitas a também pensar em termos sectários, em como se unir a outros xiitas. Levou algum tempo, não foi algo como "nos anos 1980 todos se alinharam a sua própria seita". E hoje, pelo menos nos últimos cinco anos, estamos vendo um capítulo final, por assim dizer, nessa espécie de luta onde, na maioria das vezes, todos os xiitas foram impelidos a se alinhar ao Irã ou a se manter à margem, e o mesmo ocorreu com os sunitas, impelidos a formar contra o Irã ou se manter à margem.
Assim, no Iraque, por exemplo, os sunitas não se opõem ao regime xiita ou ao Irã, e se opõem ao Estado Islâmico (EI). Mas não têm incentivos para lutar contra outros sunitas porque os xiitas não são bons para eles. Então, ficam à margem. A menos que algo sério seja feito para encarar o problema entre as duas seitas, é difícil ver uma saída.
Por isso, no Irã, Khomeini e depois Ali Khamenei (líderes supremos da República Islâmica do Irã) perceberam que a abordagem pan-islamista impossível de se realizar. Foi assim que o Irã colocou toda a força à disposição de outros elementos xiitas na região. Daí o apoio desproporcional que o Irã deu à comunidade xiita no Líbano. Ainda que, em termos de doutrina religiosa, os iranianos estejam no lado oposto ao do regime sírio, o regime sírio é em grande parte um regime xiita, ainda que de uma seita diferente (alauíta), e celebrou-se uma aliança entre eles. Você tem a seita xiita no Iêmen, que é diferente da iraniana. E eles colocaram em prática o que agora é um panxiismo. Tudo isso exacerbou a imagem de que "o Irã apoia todos os elementos radicais no mundo islâmico".
Para ser honesto, de qualquer maneira - não para servir de desculpa, mas por justiça -, a maioria dos xiitas no mundo islâmico é constituída de minorias politicamente oprimidas ou maiorias também politicamente oprimidas. No Iraque, por exemplo, os xiitas são maioria, sempre foram maioria, e durante um longo período o regime era sunita e oprimia os xiitas. E, agora, a invasão americana deu ao xiismo a possibilidade de tomar o poder no Iraque, e assim eles estão governando sem dar muita atenção à democracia ou à criação de um novo Iraque. Há muita discórdia antiga a ser resolvida, há velhas vinganças a serem resolvidas, foram os sunitas que governaram por longo tempo.
Clérigos iranianos aguardam momento de votar nas eleições gerais de junho de 2013 na cidade sagrada de Qom. Foto: Seda Ravandi/AFP
Como o senhor definiria essas duas vertentes do ponto de vista das tradições de pensamento?
Historicamente, se você quiser colocar o problema em termos de pensamento religioso ou teologia, os xiitas são mais racionais em comparação aos sunitas. Eis um exemplo: se você quiser se tornar um clérigo sunita, você deve memorizar o Corão e memorizar tudo o que Maomé disse (os haddith ou tradições, ditos e relatos sobre a vida do Profeta).
Quando você se torna clérigo, você tem de pensar em termos de como você pode replicar esse aprendizado, mais do que pensar de forma independente. Se você vai para uma escola religiosa xiita, você tem de memorizar o Corão, mas a próxima etapa é estudar filosofia e lógica. O objetivo é fazer de você um pensador independente, não necessariamente alguém que simplesmente recita o que memorizou. Assim, pelo menos em um nível elementar, o xiismo é muito mais racional do que o sunismo.
O senhor refere-se à filosofia e à lógica clássicas, desde os gregos, ou às produzidas por autores muçulmanos?
Eu diria que é uma mistura de ambas, porque o que os primeiros autores islâmicos fizeram foi tomar a filosofia e a lógica gregas e incrementá- las. Eles não se ativeram ao que Platão e Aristóteles disseram nos tempos antigos. Compreenderam que havia questões que estavam erradas, não funcionavam. Então, eles as incrementaram, e na maioria das vezes o que a Europa recolheu não foram apenas os velhos textos gregos, mas também as emendas islâmicas a esses textos. Mas os xiitas são muito mais familiarizados com a moderna filosofia europeia. Eles não são estranhos a Rousseau, Kant e até mesmo Max Weber. Na academia religiosa xiita, filósofos ocidentais modernos são muito estudados.
O próprio Khomeini estava muito ciente de parte da filosofia moderna. Você não tem nada comparável a isso na tradição acadêmico-religiosa sunita. Há muitos sunitas seculares no Paquistão, no Egito, em outros países muçulmanos - novamente, sublinho, sunitas seculares - que estão a par da moderna tradição ocidental. Mas os imãs tradicionais no Islã sunita, que vão estudar em seminários e se tornam clérigos, não são familiarizados com filosofia. Geralmente, a filosofia é vista como alheia ao sunismo. Não em razão da tradição histórica do sunismo - há muitos filósofos sunitas -, mas, por alguma razão, o processo do pensamento criou essa espécie de animosidade diante da filosofia.
Quais são as razões desse "subdesenvolvimento" do pensamento filosófico entre os sunitas?
O sunismo começou como um movimento dedicado ao que considerava importante que um muçulmano fizesse, como forma de criar algum tipo de unidade no mundo do Islã. Eles eram extremamente tolerantes a variações. Sunismo, por definição, significa "aqueles que seguem o exemplo do Profeta Maomé". Assim, eles se concentram tremendamente em que você viva sua vida da mesma maneira, ou pelo menos que você aspire a viver sua vida da mesma maneira, que o Profeta Maomé viveu a vida dele. E existem diferentes interpretações ou diferentes concepções sobre como o Profeta Maomé viveu.
O sunismo tornou-se essa espécie de grande guarda-chuva que incluía visões como "O Profeta Maomé viveu assim" e "Não, o Profeta Maomé viveu assim", e todas eram acomodadas e toleradas. E os muçulmanos também estavam interessados em debates e conversações filosóficas e teológicas, porque havia questões que o Profeta Maomé não havia vivenciado.
Assim, a pergunta era "O que fazer, então?", uma vez que o Profeta nunca tratou disso - fossem questões teológicas, filosóficas ou existenciais. Muitos sunitas começaram a explorar essas linhas de questionamento na teologia e na filosofia. E teologia e filosofia não são campos que permitam distinções e diferenças agudas de opinião, do tipo que podem ser tratadas como "Você faz o que quiser, eu faço o que quiser, e nós coexistimos".
Filósofos e teólogos não toleram que a opinião do outro seja diferente. Isso continua sendo problemático para a filosofia, a teologia e mesmo a ciência. Se você se senta à mesa com uma cientista, por exemplo, e você diz que um mais um é igual a dois, e ela diz que um mais um é igual a três, não há terreno comum para qualquer diálogo. Na filosofia e na teologia, ocorre o mesmo. Você tem de aceitar as mesmas premissas, o mesmo processo, e assim você tem de chegar necessariamente às mesmas conclusões. Se você não faz isso, suas premissas e seu processo de debate estão errados.
A teologia é, portanto, inclinada a criar cismas muito mais sérios entre o mesmo grupo do que questões do tipo "como se vestir", "como rezar", "como aparar o bigode". Essas questões parecem estar abertas a diferenças de opinião, e assim você se adapta e tolera tudo. Dessa maneira, você não está abordando, por exemplo, a salvação. Os sunitas se tornaram muito avessos à filosofia e à teologia porque muitos começaram a ver essas áreas como capazes de levar à fragmentação da comunidade.
O modelo - um modelo negativo, que estava diante deles - eram as comunidades cristãs no Oriente Médio. O cristianismo é muito devotado à teologia. Há todo um debate sobre quem foi Jesus, se Jesus era Deus, filho de Deus ou igual a outros seres humanos. Todo esse debate criou uma variedade de seitas cristãs, cada uma dizendo que a outra era herética. Os muçulmanos viam os cristãos e diziam: "Por que eles não se unem? Por que eles não podem estar unidos como cristãos? Por que são tão fragmentados?".
E imaginavam, ou pelo menos se convenciam, de que era por causa da filosofia e da teologia. Dessa forma, gradualmente, houve esse distanciamento de muitos sunitas desses dois tópicos. Por volta dos séculos 14 e 15, muitos eruditos sunitas começaram a dizer: "É melhor para o sunismo que esses tópicos não sejam ensinados em escolas sunitas. Assim, para se tornar clérigo, é muito, muito melhor que os estudantes não sejam jamais educados nisso, jamais expostos a essas coisas, porque isso apenas levará à fragmentação e à animosidade".
Por fim, isso levou à formação de eruditos que se parecem com imitadores, como papagaios. Eles apenas repetem coisas em vez de pensar independentemente. Há uma crise no mundo sunita porque não se pode contar com eruditos e clérigos para chefiar uma espécie de renascimento islâmico, uma vez que, na maioria das vezes, esses indivíduos são treinados para imitar, não para pensar de forma independente.
A Primavera Árabe aumentou a tensão entre sunitas e xiitas?
De certa forma, pode-se dizer que, inadvertidamente, a Primavera Árabe levou a uma exacerbação da tensão entre sunitas e xiitas. Em muitos países muçulmanos, há ditadores no poder e, portanto, há pessoas interessadas em mantê-los lá e outras - a maioria, provavelmente - interessadas em derrubá-los. E, invariavelmente, os interessados em derrubar ditadores tendem a ser membros do lado oprimido. Assim, se você olhar para o Iêmen, por exemplo, os interessados em derrubar o regime são xiitas que foram oprimidos desde os anos 1960.
Você também tem muitos sunitas que são contra o regime e devem estar desejando ir para as ruas em protesto. No Egito, não há divisão sectária - provavelmente apenas 2% dos egípcios não são sunitas -, como no restante do norte da África. Mas, em lugares como a Síria, você tem sunitas e xiitas, e os xiitas estão no poder. Assim, quando ocorre algo como a Primavera Árabe, as tensões entre sunitas e xiitas entram em ação: os manifestantes contra o regime na Síria são identificados como militantes sunitas, fanáticos sunitas interessados em derrubar o regime.
Dessa forma, o que está acontecendo é apresentado como um choque entre sunitas e xiitas. No caso do Iêmen, um ditador foi derrubado no início da Primavera Árabe, mas os que estavam no poder eram xiitas, e então isso é visto como uma questão entre sunitas e xiitas. Houve algo semelhante na Arábia Saudita. Previsivelmente, a maioria dos que participaram das manifestações eram xiitas da região nordeste do país, e a Arábia Saudita os reprimiu.
Assim, em todos os países onde há presença de sunitas e xiitas, a Primavera Árabe adquiriu esse sabor de luta entre sunitas e xiitas - no mínimo, porque a maioria dos descontentes tende a ser da seita oposta à dos que estão no poder. E isso agravou tremendamente a tensão entre sunitas e xiitas, porque agora apoiadores dos regimes sunitas - apoiadores da Arábia Saudita, como o Catar - entram em cena para ajudar. Isso ocorreu, por exemplo, no Bahrein.
Se você toma a Síria como objeto de estudo, é fascinante notar que tudo começou como um movimento de sunitas, mas que não era necessariamente definido em termos religiosos. Eram moradores de aldeias e cidades se levantando contra um regime opressivo. Gradualmente, eles concluíram que não tinham outra escolha a não ser se alinhar com grupos sunitas radicais.
E, de fato, o problema é que vivemos um período, especialmente depois do ano passado, em que não temos mais nenhum negociador confiável que possa levar os contendores à mesa de negociação. Temos a crise entre palestinos e israelenses, entre Arábia Saudita e Irã, entre Estados Unidos e Rússia. O que falta atualmente são moderadores que possam levar os dois lados a uma mesma mesa e tentar negociar algo.
Nos anos 1980, havia muitos canais abertos, fosse em termos de países do norte da Europa tentando reaproximar União Soviética e Estados Unidos - a Suécia teve um papel importante, a Noruega participou de negociações palestino-israelenses. Neste momento, não vemos nada disso. Isso é uma desgraça. Portanto, sim, a Primavera Árabe começou com premissas diferentes, promessas diferentes, razões diferentes, e gradualmente afundou nesse tipo de discurso sectário em razão da animosidade sunita-xiita que está essencialmente varrendo o mundo islâmico.
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Luiz Antônio Araujo
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