* Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pós-doutor na School of Oriental and African Studies, na Universidade de Londres
Todo evento guarda uma rede complexa de elementos cruciais para a nossa compreensão. Um acontecimento como o atentado ao Charlie Hebdo é um evidente ataque à liberdade de expressão, um tiro certeiro na ideia de imprensa livre, um dos pilares do que as sociedades ocidentais conhecem como democracia. No entanto, tomado pela ideia do terror - marca já definitiva dos primeiros anos deste século -, ele revela uma disputa de sentidos, uma teia de contradições e interesses diversos que inviabiliza qualquer esforço de leitura a partir de dualidades.
Logo após o ataque, #jesuischarlie ("eu sou charlie") foi a hashtag que viralizou. Colocar-se no lugar do outro, do que sofre o ataque, configura-se como o gesto primeiro: "somos todos um" é o sentimento gerado a partir de um jogo catártico e coletivo. Os dias subsequentes, no entanto, começam a apresentar as contradições que o evento suscita: #jenesuispascharlie, ainda que em menor proporção, é a força contrária que, também nas redes e em artigos publicados em jornais e sites voltados para as questões do mundo árabe, evoca outros sentimentos.
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Enquanto a primeira ação se apresenta tomada por uma concepção irrestrita do que seria a liberdade de expressão - um princípio democrático intocável -, a provocação nos dias seguintes chama atenção para o fato de que a liberdade de um pode esbarrar nos limites da experiência do outro. E, pensado por este viés, o gesto de se colocar no lugar de qualquer outro é inevitavelmente um jogo perigoso, pois haverá sempre um a reafirmar o seu lugar de fala.
Por esta razão, o esforço de escaparmos do lugar simples (que nos manteria presos à ideia de definir qual desses "uns" ocupa uma posição mais ou menos correta) requer de nós a compreensão de que um dos embates que os atos de terror hoje suscitam diz respeito também à instituição de uma lógica binária. É a divisão nós/eles que, no caso específico desses acontecimentos, remonta à ideia de um mundo dividido em Ocidente/Oriente.
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Uma das marcas do conhecimento moderno, produzido e disseminado pelas e nas sociedades ditas "ocidentais", é a invenção do outro como menor. A este outro que, por razões diversas, não corresponde às regras da lógica civilizatória, resta o lugar da diferença radical, do bárbaro. O continente europeu - e recentemente os Estados Unidos - incorpora este lugar civilizador, sendo ambos bastante hábeis em disseminar práticas e saberes que legitimam e reiteram sua centralidade. A despeito das forças que nunca hesitou em usar quando se tratava de dar lugar ao empreendimento colonialista (é difícil pensar no ataque desses "terroristas" em Paris, até agora identificados como franco-argelinos, sem nos lembrarmos da Guerra de Independência da Argélia), a Europa foi sempre competente em fazer prosperar a ideia de centro em detrimento do que então se configura como margem ou resto.
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No entanto, o século 21, nos seus anos iniciais, já nos parece ensinar que os ataques terroristas perderam, ou muito provavelmente jamais tiveram, qualquer centralidade, seja de natureza geográfica, étnica ou religiosa. Eles podem ocorrer em Nova York, orquestrado pela rede Al Qaeda; na Noruega, arregimentado por um único indivíduo que assassina adolescentes noruegueses porque se diz contra imigrantes; no Iraque, porque feito em nome de uma "guerra ao terror"; no Paquistão, quase cotidianamente, por forças opostas que usam seu espaço geográfico como arena de luta; ou em Paris, onde um dos policiais mortos, por quem diz lutar em nome do Profeta, é francês e muçulmano.
No mesmo dia do ataque, o Yemen sofria um ato terrorista que matou 37 pessoas. A notícia parece ter sido pouco noticiada na conhecida imprensa mundial, somente o New York Times e a Al Jazeera America o teriam feito. A Globo News soltava uma chamada na parte inferior da tela, enquanto o centro da atenção era o acontecimento na Europa. É assim que a ideia de centro respinga no discurso impetrado pela mídia. E para além da dor em torno das vidas e das ideias perdidas neste último ataque, é bastante emblemático reconhecer que o alvo agora tenha sido a imprensa.
Um lápis que desenha uma sátira não é jamais comparável a uma arma que extirpa a vida do outro. Logo, seria simplório pensar as sátiras e o ataque como uma relação de causa/efeito. Assim, precisamos reconhecer que ficar entre a arma e o lápis não basta quando o objetivo é pensar as práticas democráticas atuais. Neste caso específico, esta simples comparação deixaria em segundo plano um aspecto relevante, o fato de que um objeto cultural tenha sido o pivô do ataque. A imprensa, suas charges e sátiras, enfim, a arena midiática - e nela o jornalismo - precisa ser reconhecida como um lugar no qual atos terroristas também ganham sentidos.
Em termos quantitativos não há comparação, tampouco, entre o ataque ao WTC, em Nova York, e este em Paris. Mas, de modo algum, eles podem ser vistos isoladamente. Entre o ataque a um símbolo do "dinheiro" - as torres - e agora a um outro que significa a "expressão" - a imprensa -, o que está em cena é a disputa pelos sentidos e pelos lugares de poder. No mundo contemporâneo, esta é a luta que os atos terroristas também suscitam, uma luta que acontece no jogo próprio do discurso.
E é também significativo que a Bastilha estivesse ali ao lado. Igualdade, fraternidade e liberdade são princípios que hoje se alimentam de práticas e desejos que vão além dos ideais da Revolução Francesa. No mundo em que vivemos, o universal que naquela praça se instituiu parece insuficiente. Há outras experiências e outros saberes - por exemplo, as mulheres proibidas de usar véu na França - que hoje colocam em questão esses mesmos princípios, o que significa dizer que não basta defini-los a partir de "um" em detrimento do "outro". O que os atos terroristas hoje cruelmente nos dizem? Nenhuma reflexão sobre democracia ou liberdade de expressão pode se excluir das forças e dos discursos geopolíticos que tecem o mundo contemporâneo. Um grande desafio a ser enfrentado.
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