Dos gritos racistas nos estádios de futebol às incitações homofóbicas nos debates presidenciais, passando pelos linchamentos morais disseminados pelas redes sociais, os brados da intolerância ganham cada vez mais decibéis. Na semana em que excretou sua homofobia na TV, o candidato Levy Fidelix viu o número de curtidas em sua página no Facebook crescer 140%. E até uma improvável página de "apoio" à torcedora gremista que chamou o goleiro do Santos de macaco se mantém ativa - contra a vontade da própria Patrícia Moreira -, reunindo mais de 6,5 mil curtidores de mensagens como "diga não à miscigenação racial. Se o povo de Israel não se mistura, a gente também tem o mesmo direito".
Ao mesmo tempo em que gera revolta - e novos xingamentos, numa espiral de desrespeitos - o clima beligerante que contamina discussões públicas como essas provoca reflexões sobre nossa capacidade de aceitar as diferenças. A intolerância está aumentando na sociedade contemporânea? Ou a profusão de casos de racismo, baixaria nas discussões políticas, violência no futebol e brigas no trânsito estaria apenas mais visível pela vitrine das redes sociais?
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Para o psicanalista Oscar Cesarotto, coordenador do Centro de Estudos em Semiótica e Psicanálise da PUC-SP, o acirramento da intolerância seria um preço paradoxal que se paga pela globalização. Na mesma medida em que há um estreitamento de fronteiras pela tecnologia e a imposição de convívio com diferenças em todo o mundo, esse movimento induziria como resposta um reforço à cultura do gueto, pelo medo do diferente. E as redes reforçariam a segregação, ao juntar os "parecidos" e permitir a formação de clubes de amor ou ódio a determinada causa.
- Quanto mais se olha para dentro, mais se detesta o de fora. É uma espécie de curto-circuito da globalização - diz.
Na sua avaliação, essa agudização é especialmente marcante em anos de Copa e Eleição, em que todo mundo "quer ganhar" - o que implicaria necessariamente o desejo de que o outro perca. E aí a lógica das torcidas organizadas, do "nós" contra "eles" invade todos os campos de discussão. A historiadora Zilda Maria Grícoli Iokoi, coordenadora do Diversitas - Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos da USP e do Programa de Pós-Graduação Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades da universidade, concorda que a analogia das torcidas ilustra bem o fenômeno. Sempre que vestimos uma camiseta de um "time", seja ele qual for, assumiríamos automaticamente uma postura de intolerância, ao encarnar a lógica do "meu" versus o "outro".
- Em todos os lugares sociais onde a homogeneidade do grupo é muito forte, a intolerância está presente - alerta.
Por outro lado, isso não é novo. Zilda diz que está em curso um "enorme fenômeno de intolerância contínuo", historicamente disfarçado no Brasil por um discurso de que somos um povo cordial, "boa gente" e tolerante.
- Essa intolerância está aumentando, mas é dirigida para grupos específicos como pobres, negros, índios, não se expande para todos. Jovens negros são assassinados toda semana sem grande alarme - observa.
Uma das causas seria o reforço à cultura do medo, acentuada pela segregação de classes, com a formação de bolhas sociais que confinaram a classe média na escola privada, nos shoppings centers e em redes sociais de iguais.
- Quando todo mundo ia para a escola pública, o filho do operário convivia com o filho do patrão. Hoje não conhecemos o outro, e se teme o desconhecido. Criamos formas de vida que usam a violência para tentar nos proteger e falta consciência da responsabilidade social. Se uma criança é chamada de macaco numa escola, por exemplo, não acontece nada - observa.
Entre as tentativas de corrigir essas diferenças sociais e históricas, está a criação de cotas para minorias como negros e indígenas. Só que, paradoxalmente, as ditas ações afirmativas também enfrentam seu revés. Incomodados por verem seu lugar ameaçado, os grupos hegemônicos reagem, aumentando a agressividade contra grupos que historicamente sempre estiveram à margem. Mais uma vez, a intolerância cresce. Para o psicanalista João Angelo Fantini, professor do curso de psicologia da Universidade Federal de São Carlos e autor do livro Raízes da Intolerância (Editora EdUfscar), a ascensão da dita nova classe média também contribui para agudizar os ânimos, mexendo em privilégios sociais arraigados. Um exemplo seria o preconceito dos tradicionais frequentadores de aeroportos com a chegada de pessoas que pela primeira vez na vida podem andar de avião.
- Estas questões agora não estão mais presas dentro do livros e das universidades: elas estão sendo discutidas - consciente e inconscientemente - em shoppings e aeroportos - pondera Fantini (leia entrevista nos links nesta página).
As redes sociais seriam o palco privilegiado para expor os conflitos latentes. Se antes a mesa de bar era o espaço para amigos contraporem teses particulares e desabafos, atualmente as discussões migraram para a internet - com a diferença de que tudo fica registrado, que os participantes podem se proteger pelo anonimato - e que não têm hora para acabar. Essa ilusão da privacidade permite dar vazão a pontos de vista que antes poderiam ficar represados.
- Não acho que está crescendo a intolerância, mas com a rede isso ganha novas fermentações, com o jogo da exposição pública. O racismo no Brasil existe desde muito antes das redes sociais, mas no Brasil essa temática nunca saiu do subsolo, mascarando as situações concretas do dia a dia. Não foi a internet que aumentou a intolerância, ela agora permite uma resposta - analisa o professor Henrique Antoun, coordenador do grupo Cibercult - Laboratório de Comunicação Distribuída e Transformação Política da UFRJ.
Ao possibilitar novas formas de diálogo, a internet colocou a intolerância em discussão, tirando-a de debaixo do tapete. E nem dá mais para colocar a culpa no álcool e dizer que não lembra do que falou na noite passada. Há sempre uma timeline para refrescar a memória.