Em PDF, leia histórias de outras lendas urbanas
O homem que consertava gaitas (publicada em Zero Hora em 1995)
As pichações de Toniolo (publicada em Zero Hora em 1994)
Uma imagem convive com quem anda pelas ruas da Capital: adesivos de um indiozinho, geralmente em preto e branco, com olhos grandes e iluminados sem proporção com o resto do rosto e uma pena centralizada na cabeça forrada de cabelos negros. Lembrou?
Ela entrou para o fabulário de mitos urbanos de Porto Alegre. À boca pequena se diz que seria um símbolo do tráfico internacional, uma ação de marketing, um louco tentando se comunicar, uma banda de rock, e por aí vai. A competição por esse imaginário é alta: as plaquinhas de "Gaita Conserta-se", que diziam ser um código para uma clínica clandestina de aborto; as célebres pichações e adesivos de Toniolo; e os adesivos escritos "Jesus em breve voltará".
E a realidade, ao menos dessa vez, é menos romântica que a ficção. Quem preferir manter o mito, deve parar a leitura aqui.
O índio com ar de mangá se chama Xadalu e foi criado por Dione Martins. Ele se define como um artista contemporâneo de colagem ou sticker art - sempre vale usar uma expressão em inglês.
- Aos 13 anos, eu criei uma organização para dominar o mundo que se chamava Xadalu - lembra Martins do delírio megalomaníaco adolescente onde surgiu o nome da imagem que agora domina as ruas de Porto Alegre.
Talvez pelo respeito à rua, Martins prefira não comentar a ação dos pichadores pela cidade. O seu trabalho, contudo, está numa categoria diferente. Ele possui um tipo de sistema ético que limita os espaços onde coloca cartazes e adesivos - sempre em tapumes de obras ou na parte de trás das placas de trânsito.
A orientação da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), contudo, é que, em princípio, não se pode colocar nas placas qualquer manifestação, seja de folhetos de propaganda ou adesivos, pois pode apresentar risco aos motoristas e pedestres. Para a Secretaria Municipal do Meio Ambiente (Smam), só há problemas de colar algo nos tapumes se houver algum apelo comercial - o que não é o caso.
Em vídeo, saiba mais sobre o trabalho do artista
Vindo de Alegrete para Porto Alegre aos 12 anos com a mãe e a vó, ambas faxineiras, o artista teve uma infância difícil. Foi pedreiro, trabalhou como gari e acabou aprendendo a arte da serigrafia, técnica usada na produção dos adesivos. Ele, então, se tornou um artista de rua, que conhece a rua e foi, de certo modo, abraçado por ela. Deu forma ao personagem que batizou de Xadalu e passou a colá-lo anonimamente pela cidade.
- Eu já era artista, mas fui me lapidando.
Lapidar significa estudo. Martins acumula cursos para aprimorar o trabalho: são três técnicos (Publicidade e Propaganda, Colorimetria, Designer Gráfico) e mais um de história da arte, desenho e fotografia. Aos 28 anos, faz cursinho pela manhã no Centro e tentará, pelo segundo ano, passar no vestibular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul para Design Visual.
Rogério Soares de Souza, um guardador de carros que trabalha na Andradas, próximo à Caldas Júnior, protege os adesivos colados nas placas da região:
- Se colam alguma coisa por cima, eu tiro.
Para André Venzon, diretor do Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul (MACRS), a arte urbana está relacionada a uma questão do abandono:
- O alvo desses artistas são locais mais marginais, para chamar atenção ao seu trabalho e às pessoas.
Martins diz o que o desenho representa mais: é uma causa, uma lembrança dos povos indígenas brasileiros que foram quase dizimados. Seria "um protesto silencioso".
- Por ser uma causa relacionada a uma cultura originária, houve uma grande aceitação no Exterior. O Xadalu está em 60 países.
Com uma fala modulada pelo tom cordato, sem grandes alterações de intensidade na voz - o que uma avó descreveria como menino educado - talvez herança do período em que foi evangélico entre os seis e 12 anos, Martins deseja, como artista, fazer a ponte entre a rua e o museu. Ou seja, entrar no sistema oficial da arte, que começou com a participação de uma exposição no MACRS em 2012. É uma forma de contornar o anonimato do seu trabalho nas ruas e receber a legitimação da autoria que o museu simboliza.
Com o sucesso da figura, surgiram novos projetos. Há um da Zeppelin Filmes, sob o comando do diretor Tiago Bortolini de Castro, de fazer um documentário sobre o trabalho de Martins. Ele foi atraído para o projeto, que já tem um ano, pela convergência de assuntos do tema: arte de rua, Porto Alegre e questão indígena.
Parte das imagens que será usada no filme foi gravada por Leandro Abreu, câmera que acompanha o artista filmando e fotografando pela cidade desde 2011. Abreu ajudou a espalhar o trabalho do amigo pela América Latina em 2013.
- Viajei pelo continente e acabei levando comigo uns 300 adesivos. Fui distribuindo e colando pelos lugares por onde eu passava.
Xadalu foi estampado então pelo Deserto de Sal na Bolívia e entregue aos Uros, uma tribo pré-colombiana, que habita as ilhas flutuantes no lago Titicaca, localizado no altiplano dos Andes.
O trabalho de Dione é diferente do dos pichadores e dos outros símbolos que se tornaram lendas urbanas de Porto Alegre. As placas que anunciavam o conserto de gaitas eram realmente colocadas por um homem que consertava gaitas na Tapuias, 135. Os adesivos do Toniolo são uma mensagem política de um ex-escrivão da polícia. As mensagens sobre o retorno de Jesus, bom..., não foram desvendadas pela reportagem, mas sabe-se que a profecia ainda não se concretizou. Dione quer a legitimação, mas convive com a realidade do estilo efêmero e sem assinatura, que dá margem à interpretações absurdas e até competição pela criação do Xadalu.
Caminhando pela Andradas em uma quarta-feira à tarde, vestindo um moletom com uma estampa do indiozinho, enquanto falava com Zero Hora sobre seu trabalho, ele foi parado por um adolescente que apontou para o desenho e disse:
- Eu sei quem faz isso daí. É o Vítor!
Dione riu e disse:
- Acontece direto.
Veja mais fotos do Xadalu pela cidade: