É enganoso vídeo que diz que uma militante do PT e do MST teria captado R$ 2 milhões via Lei Rouanet por ser amiga do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Projeto de diretora e produtora baiana foi aprovado pela Agência Nacional do Cinema (Ancine) para captação por meio de mecanismos previstos na Lei do Audiovisual, sem relação com a Lei Rouanet. Além disso, não encontramos indícios de que ela seja amiga de Lula.
Conteúdo investigado: Em vídeo, homem afirma que uma mulher chamada Thamires Santos Vieira, que seria militante do PT e do MST, “captou R$ 2 milhões da Lei Rouanet por ser amiga do Lula”, enquanto 7 milhões de baianos estariam passando fome.
Onde foi publicado: Instagram, TikTok e X (antigo Twitter).
Conclusão do Comprova: Vídeo engana ao afirmar que Thamires Santos Vieira, diretora e produtora audiovisual da Bahia, teria captado R$ 2 milhões pela Lei Rouanet por ser amiga do presidente Lula (PT). Uma proposta de Vieira recebeu, sim, autorização para captar recursos, mas não pela Lei Rouanet. Além disso, o autor do post enganoso se baseia apenas em um post de Vieira em que ela declara apoio ao petista, mas não encontramos qualquer indício de que ela tenha uma relação de amizade com o presidente.
Sobre a captação de recursos, pela plataforma da Agência Nacional do Cinema (Ancine), é possível verificar que nenhuma das fontes de captação autorizadas têm relação com a Lei Rouanet. Dentro dos R$ 2.020.000 autorizados para captação, estão inclusos valores aprovados pelos mecanismos previstos na Lei 8.685/93, conhecida como Lei do Audiovisual, em editais da Ancine, leis estadual e municipal de incentivo e fomento à cultura e a contrapartida obrigatória do produtor.
O projeto ainda não captou recursos, tendo recebido autorização para tal no dia 26 de setembro de 2023. A produtora tem autorização para conseguir os recursos até o dia 31 de dezembro de 2026.
Questionado pelo Comprova, o MST informou que Thamires não é militante do movimento. Também buscamos o nome da diretora na base de dados de filiados a partidos políticos do site Brasil.io e, ao menos até abril de 2018, ela não era filiada a nenhum partido.
O vídeo também erra o número de pessoas em situação de fome na Bahia. De acordo com pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, de 2022, há 1,7 milhão de pessoas em situação de insegurança alimentar no estado, e não 7 milhões.
Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. No Instagram, a publicação teve 2.1 mil visualizações até o dia 17 de novembro de 2023. O vídeo também foi publicado no TikTok, mas foi retirado do ar, junto à conta do autor. A gravação foi republicada no X, alcançando cerca de 300 visualizações.
Como verificamos: Primeiramente, o Comprova buscou pelo perfil de Thamires no Instagram e encontrou as fotos usadas no vídeo: em uma imagem, ela aparece vestindo uma camisa vermelha com adesivos do número 13 e a outra é uma montagem com imagem de pessoas erguendo bandeiras do Movimento Sem Teto de Salvador (MSTS).
Depois, procuramos o nome de Thamires no Diário Oficial da União. A pesquisa retornou algumas publicações sobre produções audiovisuais submetidas à captação. Também entramos em contato com a Ancine para esclarecer os mecanismos de fomento utilizados pelo projeto. Consultamos o MST e a relação de filiados a partidos políticos do Brasil.io. Por fim, tentamos falar com Thamires e buscamos o responsável pelo vídeo.
Captação não foi autorizada pela Lei Rouanet
O projeto ao qual o vídeo se refere é o documentário Mulheres do Bando, produzido pela Terá Filmes, empresa coordenada por Thamires Vieira. A proposta recebeu autorização para captar recursos no dia 26 de setembro de 2023, conforme esta publicação no Diário Oficial da União (DOU). A postagem investigada, inclusive, usa uma captura de tela da publicação do DOU para mostrar o valor total aprovado para captação, de R$ 2,020 milhões.
Segundo a plataforma de consulta aos projetos audiovisuais da Ancine, nenhuma das fontes de captação têm relação com a Lei Rouanet, ao contrário do que alega o vídeo. Dentro do montante estão incluídos valores aprovados pelos mecanismos previstos na Lei 8.685/93, conhecida como Lei do Audiovisual, em editais da Ancine, leis estadual e municipal de incentivo e fomento à cultura e a contrapartida obrigatória do produtor. Conforme a plataforma, o projeto ainda não captou recursos. Veja o detalhamento:
O Art 3º- A da Lei do Audiovisual define que as empresas detentoras de direitos de exibição de filmes, eventos e competições esportivas, transmitidas por rádio e televisão, a exemplo de emissoras de TV abertas ou a cabo, podem abater até 70% do imposto devido desde que invistam no desenvolvimento de obras cinematográficas brasileiras.
No âmbito das legislações locais, o Programa Estadual de Incentivo ao Patrocínio Cultural (Fazcultura) foi instituído pela Lei Orgânica da Cultura Baiana (Lei Estadual n° 12.365/2011) e prevê a possibilidade de incentivo a projetos culturais por meio da renúncia do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Já o Viva Cultura, programa de incentivo de Salvador, também segue o sistema de renúncia fiscal. Nesse sentido, pessoas físicas e jurídicas conseguem abater parte do Imposto sobre Serviços (ISS) e do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) devidos, em compensação ao apoio a produções culturais.
A Terá Filmes também foi autorizada a captar recursos por meio de editais da Ancine, alimentados pelo Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). O fundo é composto por diversas fontes de receita da União, sendo a principal delas a arrecadação da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine).
A Instrução Normativa nº 158, que traz diretrizes sobre projetos audiovisuais de competência da Ancine, determina que 5% do orçamento total do projeto deve ser custeado com recursos próprios do proponente. Dessa forma, dos R$ 2,020 milhões aprovados, a empresa deve custear, obrigatoriamente, R$ 120 mil.
Produtores que desejam captar fundos por meio de programas da Ancine devem atender algumas condições para receber aprovação do projeto. Além de condições básicas como ter registro na Ancine e adequação da atividade econômica ao objeto a ser realizado, a Ancine também exige regularidade fiscal, bem como tributária e previdenciária.
Os projetos também estão sujeitos a algumas condições para serem aprovados, como: a adequação do total de recursos de fomento indireto e direto solicitados ao limite total de captação da proponente, de acordo com a sua classificação de nível; e a adequação do projeto técnico às fontes de financiamento solicitadas e seus respectivos limites legais.
Após a aprovação do projeto para captação, são abertas contas bancárias exclusivas para captação e movimentação do dinheiro. Os valores são bloqueados até aprovação para execução do projeto, por ordem expressa da Ancine.
Quem é Thamires Vieira
Thamires é diretora e produtora audiovisual e coordena a Terá Filmes, produtora de cinema independente, sediada em Salvador. Em 2018, ela codirigiu a série documental “Diz Aí – Afro indígena” e contribuiu com a direção do documentário “Viva Nossa Voz”, uma parceria do Instagram com o Canal Brasil, em 2020.
A produtora também teve outros dois projetos aprovados pela Ancine, este ano, para captação de recursos. Eles tampouco captaram recursos até o momento. O período de captação do projeto Redoma segue até o dia 31 de dezembro de 2026 e o valor máximo de captação é de R$ 4 milhões. Já o longa Paraíso de Amanda tem autorização para captar recursos até 31 de dezembro de 2027, com valor máximo de R$ 2,2 milhões.
Em suas redes sociais, ela se manifestou a favor de Lula nas eleições presidenciais de 2022. No entanto, não há qualquer indício de que ela tenha uma relação de amizade com o presidente da República. O Comprova tentou entrar em contato com a diretora, mas não obteve resposta até a publicação desta verificação.
Questionado pelo Comprova, o MST informou que Thamires não é militante do movimento. Também buscamos o nome da diretora na base de dados de filiados a partidos políticos do site Brasil.io e, ao menos até abril de 2018, ela não era filiada a nenhum partido. A publicidade dos dados de filiação partidária foi limitada por decisão do TSE, em 2021, para conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
Fome na Bahia
No vídeo, o homem afirma mais de uma vez que 7 milhões de baianos passam fome atualmente. Esse número também não condiz com a situação real. De acordo com a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, em 2022, ano de publicação do último relatório, 1,7 milhão de baianos conviviam com a fome.
Segundo o último censo, de 2022, a Bahia tem 14.141.626 habitantes.
Cabe ressaltar que os recursos voltados a iniciativas de incentivo e fomento à cultura são diferentes dos empregados em programas de combate à fome. Além disso, a Constituição Federal veda a transferência de recursos de uma pasta para outra, sem prévia autorização do Poder Legislativo. Ou seja, ainda que o governo quisesse tirar dinheiro da cultura para aplicar em programas de assistência social, seria necessário aprovar no Congresso uma lei específica para o remanejamento.
Em 2023, o governo federal recriou o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), considerado essencial para a retirada do país do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU). O orçamento total previsto para o programa neste ano chega a R$ 900 milhões. Recentemente, a Bahia aderiu à iniciativa e recebeu um montante de R$ 13,88 milhões para execução do PAA no estado.
O programa prevê que, no mínimo, 30% das compras públicas de alimentos devem ser adquiridas da agricultura familiar e, posteriormente, destinadas a ações de combate à fome.
Lei Rouanet
Criada em 23 de dezembro de 1991, a Lei de Incentivo à Cultura, conhecida como Lei Rouanet, é um mecanismo de incentivo fiscal do governo federal que permite que empresas e pessoas físicas possam destinar uma porcentagem de seu imposto para iniciativas culturais. O objetivo é estimular e fomentar a produção, preservação e difusão cultural.
O valor do imposto vai para os programas aprovados pelo Ministério da Cultura, em um investimento indireto. Os principais critérios de avaliação utilizados pela pasta para aprovar um projeto são: a capacidade de ampliar o acesso da população à cultura; e compatibilidade de custos e capacidade técnica e operacional do proponente, respectivamente.
Uma vez aprovados, os proponentes devem buscar empresas e pessoas dispostas a financiarem os projetos através dos impostos. Desse modo, o governo dá a autorização para a captação de um determinado montante, mas isso não significa que o proponente vai obter todo o dinheiro previsto.
A execução do projeto incentivado é acompanhada pelo ministério, de forma eletrônica, por trilhas implementadas no Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura (Salic), que identificam possíveis inconsistências de execução. Esse acompanhamento é diferente dependendo do valor captado do projeto, classificado como pequeno (até R$ 750 mil), médio (de R$ 750 mil até R$ 5 milhões) e grande (acima de R$ 5 milhões).
Todos os projetos devem realizar a comprovação de despesas de forma eletrônica, durante a execução. Essas informações são cruzadas com os valores utilizados em conta bancária específica e acompanhada, em tempo real, pelo ministério.
O que diz o responsável pela publicação: O Comprova entrou em contato com o autor do post via mensagem no Instagram. Ele defendeu a publicação afirmando que o conteúdo foi retirado do DOU e argumentou que o dinheiro poderia ser usado em outras áreas. Como esclarecido nesta verificação, as alegações feitas no vídeo estão fora de contexto. O responsável já foi alvo de outras verificações do Comprova. A iniciativa já desmentiu que um produtor cultural teria viajado a Portugal com dinheiro recebido da Lei Rouanet.
O que podemos aprender com esta verificação: O vídeo usa uma publicação do Diário Oficial da União como forma de conferir credibilidade às alegações do autor. No entanto, é preciso verificar se o documento, de fato, corrobora com as informações dadas na gravação. Nesse caso, ele alega que os recursos aprovados foram captados por meio da Lei Rouanet. No entanto, os mecanismos de incentivo eram outros e sequer houve captação de recursos.
Além disso, é comum que agentes de desinformação associem os investimentos em cultura a problemas relacionados a outras questões sociais, como a fome, o desemprego e a desassistência à saúde. Mas é preciso entender que cada área possui orçamento próprio e o emprego de recursos em um setor não significa o abandono de outros.
Por que investigamos: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.
Outras checagens sobre o tema: O Comprova já verificou outras publicações relacionadas à Lei Rouanet. Como afirmado acima, a iniciativa mostrou que um produtor cultural não foi a Portugal com dinheiro recebido do mecanismo e publicou também que tuíte engana ao dizer que Ludmilla receberá R$ 5 milhões por projeto que leva seu nome.
Problemas no Nordeste também são frequentemente alvos de desinformação. Recentemente, o Comprova verificou que o governo Lula não criou taxa para uso de poços artesianos e a gestão de recursos hídricos é papel dos estados e que vídeo resgata notícia antiga e engana sobre interrupção da Operação Carro-Pipa na gestão do petista.