Os protestos que abalaram o país em junho de 2013 mexeram, de alguma forma, com a vida de todos os brasileiros. Embora ainda existam divergências sobre o que gerou o movimento e por que razões ganhou tanta força, acadêmicos ouvidos por GZH tendem a concordar que a sucessão de atos mudou o país: o Brasil pós-2013 retomou a ocupação das ruas como forma de participação política e aprofundou a polarização que hoje marca a sociedade, mas também viu crescerem movimentos em defesa de direitos de populações como mulheres, negros e indígenas.
— O Brasil hoje é muito diferente do que era antes de 2013. Desde junho, o país ficou inquieto à esquerda e à direita. Vieram depois várias mobilizações, eventos contra a Copa, greves, ocupações de escola, movimento de caminhoneiros, defesa do impeachment da Dilma. Esse sentimento de inquietação foi explorado e também deu origem a uma nova direita — avalia o professor de Gestão de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (USP) Pablo Ortellado.
Para o cientista político e professor de Relações Internacionais Bruno Lima Rocha, não se pode esquecer que o movimento teve uma luta concreta em favor do transporte público que trouxe conquistas como a implantação de passe livre em um número crescente de municípios a partir dali – atualmente, pelo menos 67 cidades aplicam a tarifa zero, de acordo com levantamento da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU).
— Depois, houve um sequestro da pauta por parte da direita — avalia Rocha, referindo-se ao combate à corrupção e à defesa da Lava-Jato.
Esse é um ponto controverso ainda hoje em relação aos acontecimentos de uma década atrás. A professora de Sociologia da USP Angela Alonso discorda da tese do “sequestro” das manifestações de esquerda pela direita. Em seu novo livro Treze (Companhia das Letras), ela afirma que os atos de 2013 foram motivados por um trio de “zonas de conflito” que vinham fermentando há alguns anos e animaram tanto a direita quanto a esquerda de forma concomitante naquele momento, embora em sentidos opostos: questões envolvendo moralidade pública (corrupção) e privada (temas como aborto e sexualidade), redistribuição de renda (incluindo transporte público, direito a terra e moradia) e violência estatal (segurança pública e crimes da ditadura).
— As pessoas não se dão conta, mas em 5 de junho, um grande ato contra o aborto e o casamento gay reuniu 70 mil pessoas em Brasília — afirma Angela, referindo-se à Marcha em Defesa da Família Tradicional, da Liberdade de Expressão e Religiosa, ou, como ficou mais conhecida, simplesmente Marcha da Família.
Ou seja, desde o começo do mês os conservadores também estavam marchando. Ela considera que o fenômeno daquele ano pode ser melhor caracterizado como um ciclo de protestos em estilo mosaico:
— Era um monte de movimentos pequenos que passaram a ocupar as ruas por razões diferentes.
Lembro que, dependendo do local, parecia um protesto diferente
MARCELO KUNRATH SILVA
Professor da UFRGS
Professor do Departamento de Sociologia da UFRGS e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Associativismo, Contestação e Engajamento, Marcelo Kunrath Silva avalia que junho segue como alvo de incógnitas e disputas políticas por suas características singulares. Uma delas: não houve um perfil ou um desdobramento único em todo o país.
— Não existiu um 2013 nacional. Algumas coisas foram comuns a todo o país, mas houve muita especificidade local. Porto Alegre, por exemplo, teve uma trajetória muito particular que começou em janeiro, teve êxito em abril e retornou às ruas em junho, mas já com outros grupos que começaram a trazer pautas anticorrupção, contra a PEC 37 (que restringia poderes de investigação do Ministério Público) e criticar o governo federal — afirma Kunrath.
Por essa razão, o professor da UFRGS acredita que em alguns casos pode fazer sentido a interpretação de um movimento originado na esquerda que acabou atraindo participantes de cores ideológicas cada vez mais variadas.
— Lembro que, dependendo do local, parecia um protesto diferente. Tinha extrema esquerda, partidos revolucionários, fascistas, anarquistas, movimentos sociais, direita liberal, até intervencionistas militares começaram a aparecer. Isso levou as pessoas a se perguntar o que estava acontecendo — complementa Kunrath.
Passados 10 anos desde que Porto Alegre serviu de berço para o surgimento desse novo Brasil, boa parte das perguntas deixadas por junho de 2013 segue sem uma resposta definitiva.
Cinco legados de 2013
Reocupação das ruas
Passadas mobilizações como a luta pelas eleições diretas, nos anos 1980, ou o Fora Collor, no início dos anos 1990, especialistas chegavam a discutir a hipótese de que a antiga forma de mobilização popular nas ruas estaria sendo substituída por articulações institucionais. Junho de 2013 marcou a volta da “política das ruas” ao país, na avaliação do professor de Sociologia da UFRGS Marcelo Kunrath Silva:
— As manifestações viraram uma forma de atuação política muito usada, inclusive por setores que tradicionalmente não faziam isso, como aqueles mais alinhados à direita. Após 2013, todo o espectro político passou a fazer protestos, pró ou contra o governo e o impeachment (de Dilma Rousseff).
Aumento da polarização
A divisão política nacional se acirrou uma década atrás. Professor de Gestão de Políticas Públicas da USP, Pablo Ortellado sustenta que as jornadas de junho “reorganizaram o campo político” brasileiro:
— Depois daquele período, a polarização deu um salto gigantesco no país. Consolidou-se a partir dali e não se desfez mais.
Esse fenômeno pôde ser percebido com clareza nas duas últimas eleições presidenciais, mas sobretudo na disputa do ano passado, em que houve uma vantagem de apenas 1,8 ponto percentual de Lula sobre Jair Bolsonaro.
Reforço às lutas identitárias
Pelo lado da esquerda, as mobilizações de 2013 fortaleceram a organização e as reivindicações de parcelas específicas da sociedade, como os movimentos feminista, negro, indígena ou LGBT+. Entre as bandeiras que sucederam a busca por melhores condições de transporte público, estiveram a igualdade de direitos e o combate a propostas em debate à época como o projeto de lei que autorizava a chamada “cura gay” (permissão para que homossexualidade fosse tratada como doença em consultórios). No dia 21 de junho, essa foi a pauta de um ato que reuniu milhares de pessoas e bloqueou os dois sentidos da Avenida Paulista, em São Paulo. O projeto acabou arquivado.
Visibilidade da direita
Em cidades como Porto Alegre e Rio de Janeiro, a pauta inicial em favor do transporte público aos poucos cedeu espaço a cartazes focados no combate à corrupção, em críticas ao governo federal e à presença de setores mais conservadores. Na capital gaúcha, os dois grupos chegaram a participar das mesmas mobilizações. Mas é só no ano seguinte, na avaliação de Ortellado, que a direita se aproveita desse sentimento de inquietação despertado em 2013, conquistando protagonismo nas ruas.
— Os grupos de direita tiveram sucesso a partir do final de 2014, já depois da reeleição da Dilma, por meio de grupos como o Movimento Brasil Livre (MBL), o Vem Pra Rua e o Revoltados On Line – afirma Pablo Ortellado.
Reavaliação do transporte público
Bandeira original das mobilizações em cidades como Porto Alegre e, na sequência, São Paulo, a suspensão de reajustes no preço das passagens de ônibus acabou se concretizando em várias cidades. Novos aumentos, porém, ocorreram apenas posteriormente. Um resultado mais duradouro dos protestos foi trazer à tona um debate mais amplo sobre temas como gratuidade e alternativas de financiamento do transporte público. No começo do ano passado, mais de 120 cidades do país já subsidiavam de alguma forma o sistema de ônibus e, até abril deste ano, pelo menos 67 municípios de pequeno ou médio porte garantiam tarifa zero em todos os dias semana.