Na noite de 20 de junho de 2013, a então presidente Dilma Rousseff questionou assessores próximos no Palácio do Planalto: como ninguém havia previsto aquele cerco popular a Brasília? Cerca de 40 mil manifestantes reclamavam do governo na Esplanada dos Ministérios enquanto um grupo menor tentava invadir o Itamaraty com pedras e coquetel molotov. Três dias antes, a cobertura do Congresso fora tomada pelos revoltosos, em mais uma etapa do maior ciclo de protestos visto em décadas.
Nem a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), nem qualquer outro órgão de segurança percebeu que o estopim das marchas que reuniriam pelo menos 4,8 milhões de pessoas em duas centenas de cidades e mudariam o rumo do país havia sido aceso meio ano antes em Porto Alegre. A faísca do movimento que deixou legados vigentes até hoje foi gerada pelo atrito de diferentes fatores — entre os quais a elevação de R$ 0,20 no preço da passagem de ônibus foi apenas o catalisador. Ao final das manifestações nacionais, cuja interpretação divide especialistas até hoje, emergiu um Brasil mais mobilizado e polarizado.
A mesma perplexidade revelada por Dilma já havia sido demonstrada 85 dias antes pelo prefeito de Porto Alegre à época, José Fortunati, quando o restante do país ainda vivia seus últimos meses de relativa tranquilidade. No final da tarde de 27 de março, tudo indicava que a prefeitura seria alvo de mais um protesto costumeiro contra o reajuste das tarifas no transporte coletivo. A quantidade de gente diante do Paço Municipal e o nível de insatisfação com o poder público desmancharam a impressão inicial.
Diante da manifestação ruidosa na Praça Montevidéu contra a elevação no valor cobrado nas catracas de R$ 2,85 para R$ 3,05, Fortunati chamou seu secretário de Governança, Cézar Busatto (falecido em 2018), e pediu que cumprisse o ritual protocolar de sair de sua sala e encontrar representantes da mobilização a fim de receber as demandas em nome da gestão municipal. Busatto voltou para o interior do prédio com a camisa rasgada e coberto de tinta vermelha. Era um dos primeiros sinais de que havia algo diferente nas ruas.
— Tudo começou em Porto Alegre. Tradicionalmente, sempre éramos a primeira capital a reajustar a tarifa de ônibus, ainda no começo do ano. Naquela vez, fomos surpreendidos pelo tom dos manifestantes. A partir dali, passamos a contar com a tropa de choque da Brigada Militar dentro do Paço para o caso de ocorrer uma invasão — recorda Fortunati.
A surpresa se explica pelo fato de que as marchas e manifestações contra o aumento no preço do ônibus e em defesa do passe livre para estudantes eram tão comuns que praticamente faziam parte do calendário letivo dos alunos mais engajados da Capital. Quase sempre, reuniam dezenas ou centenas de jovens em alguma avenida onde procuravam reviver o espírito de grandes referências da luta estudantil por transporte público como a chamada Revolta do Buzu, ocorrida em Salvador, em 2003, ou a da Catraca, em Florianópolis, nos dois anos seguintes. Um par de fatores ajudou a impulsionar o movimento gaúcho em 2013, cujo sucesso inspiraria um levante similar em São Paulo — de onde as manifestações se alastrariam para o restante do país sob uma pauta cada vez mais abrangente.
Um elemento importante foi a mudança no período em que o percentual de reajuste era concedido às empresas de ônibus. Normalmente, isso era definido nas férias dos estudantes, no auge do verão. Naquele ano, em razão de uma análise sobre o cálculo da passagem em curso no Tribunal de Contas do Estado (TCE), todo o processo sofreu um atraso.
– Como a definição ficou para março, quando os estudantes já estavam de volta das férias, tivemos bem mais pessoas envolvidas – explica a ex-integrante do Bloco de Luta pelo Transporte Público Gabi Tolotti, hoje com 40 anos.
Havia uma insatisfação com o nível dos serviços públicos
LUCAS FOGAÇA
Ex-integrante do Bloco de Luta
Um segundo fator decisivo envolveu justamente o Bloco de Luta, coletivo de diversos movimentos sociais e políticos que assumiria o protagonismo na convocação das manifestações na Capital. Criado em 2012 pela junção de entidades anarquistas, grupos autônomos, militantes vinculados a partidos de esquerda e agremiações estudantis, no mesmo ano sofreu uma cisão interna que afastou os integrantes da esquerda mais tradicional. No dia 8 janeiro de 2013, porém, uma reunião reaproximou as diversas correntes e consolidou o movimento a tempo de dar início à convocação dos primeiros protestos contra a elevação no custo do transporte para aquele mês. No dia 21, algumas dezenas de pessoas se reuniram diante da prefeitura e deram início à sucessão de ações e marchas que fariam história.
O contexto nacional favoreceria a explosão do movimento, na avaliação do ex-integrante do Bloco de Luta Lucas Fogaça, 33 anos.
— Havia uma insatisfação com o nível dos serviços públicos enquanto o dinheiro ia para a organização de megaeventos — analisa Fogaça, em referência às copas das Confederações e do Mundo de futebol, além da Olimpíada no Rio.
Professora de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), Angela Alonso está lançando um livro sobre o período (Treze, pela Cia. das Letras), em que mostra como a insatisfação acabou insuflando diversos campos políticos — o que ajuda a explicar porque pautas da direita também ganhariam corpo naquelas semanas.
— As reformas que o governo petista tenta fazer ou malogra vão gerando reações em duas direções diferentes na sociedade: um desejo de aprofundamento das reformas, por parte da esquerda, e críticas a elas, pela direita. Formaram-se oposições à esquerda e à direita do governo, e ambas foram às ruas — avalia Angela.
No meio do ano, mais de 1 milhão de pessoas se mobilizariam em um único dia em todas as regiões do país e deixariam autoridades municipais, estaduais e federais atônitas. Mas, no calendário rebelde de Porto Alegre, junho de 2013 havia começado ainda em janeiro.
Vitória na Capital consagrou novo modelo de protesto
Quando cidades como São Paulo e Rio de Janeiro começaram a se insurgir contra o custo do transporte público, na primeira semana de junho, buscavam alcançar o que Porto Alegre havia obtido dois meses antes: derrubar o aumento das passagens de ônibus. Essa conquista, que tinha um grande valor simbólico, também espelhava uma nova onda de lutas que varria o mundo na sequência da grande crise econômica global de 2008.
Essa série de manifestações populares se sucedia sob um novo formato: convocadas via redes sociais, descentralizadas, envolvendo grupos de diferentes orientações e sem uma liderança óbvia. Nos anos anteriores, multidões haviam promovido atos sob esse espírito a exemplo do Occupy Wall Street, nos EUA, manifestações em Madri (Puerta del Sol), Atenas (Praça Syntagma), além da célebre Primavera Árabe. Na capital gaúcha, o recém-formado Bloco de Luta pelo Transporte Público recorreu a uma estratégia semelhante: em princípio, não deveriam ser apontados líderes que falassem em nome do grupo, mas criadas comissões que tomariam as decisões de forma coletiva. As convocações de protesto seriam feitas por meio do Facebook, em um perfil criado com essa finalidade.
Assim, o formato tradicional da esquerda — o caminhão de som onde se revezavam líderes políticos — deu lugar a faixas e cartazes exibidos quase sempre em marchas anônimas onde a única trilha sonora eram as palavras de ordem. Sob o guarda-chuva do Bloco de Luta, havia uma singular multiplicidade de militantes que, até então, não tinham por hábito marchar juntos: anarquistas, estudantes, militantes de partidos de esquerda e sindicatos.
— Havia um desejo por unidade. Às vezes, um grupo organizava uma manifestação em um dia, e outro chamava para o dia seguinte em defesa da mesma pauta. Não fazia sentido — recorda Lucas Fogaça.
Houve alguns equívocos, mas fomos o Estado com menos incidentes
TARSO GENRO
Ex-governador
Garantida a unidade, a nova força do movimento conseguiu barrar na Justiça o aumento dos ônibus pela primeira vez após anos de protestos. A ordem foi dada pela Justiça no dia 4 de abril em favor de uma ação impetrada pelos então vereadores do Psol Pedro Ruas e Fernanda Melchionna. O juiz que concedeu a liminar, Hilbert Obara, argumentou que a decisão era técnica, mas ganhara urgência pelo clamor das ruas.
Também havia violência. A falta de um comando visível atendia ao desejo de manifestações mais horizontais e democráticas, como as de outros países, e ainda facilitava a ação de minorias agressivas. A tática black bloc, que acabou provocando danos a prédios públicos e privados e incêndios em contêineres de lixo, por exemplo, era criticada por setores do Bloco de Luta por afastar militantes mais moderados, e acabava por agravar ações consideradas por muitos excessivas por parte da Brigada Militar.
— A Brigada, em geral, agiu corretamente, com muita contenção e capacidade de resposta. Protegeu as instituições, embora ocorressem determinados excessos. Acho que houve alguns equívocos, mas fomos o Estado com menos incidentes (envolvendo repressão policial).
— Em um protesto diante do Piratini, havia um grupo estranho atirando garrafas e esferas de aço contra os policiais, mas a Brigada não caiu nessa armadilha — pondera o então governador Tarso Genro.
O corte no preço do ônibus não reduziu a dimensão dos atos. Na noite da liminar judicial, enquanto militantes gaúchos festejavam, enviados de outras capitais do país vinculados a grupos como o Movimento Passe Livre (MPL) ou Assembleia Nacional de Estudantes (Anel) participavam da mobilização para levar informações que impulsionassem ações semelhantes em outras cidades brasileiras.
Dois meses depois, no primeiro grande ato em São Paulo, faixas e cartazes deixavam clara a relação com a capital gaúcha. Um cartaz exibido diante de cones de sinalização de trânsito em chamas, no meio da Avenida Paulista, dizia “Acabou o amor, SP vai virar Porto Alegre”. Uma faixa trazia a frase “Vamos repetir Porto Alegre”.
Ao mesmo tempo, na capital gaúcha, as manifestações seguiam sendo convocadas. Para a ex-integrante do Bloco de Luta Gabi Tolotti, a derrubada do reajuste da passagem estimulou os articuladores dos atos em vez de freá-los.
— A passagem era o programa mínimo. Quando conquistamos isso, vimos que poderíamos conquistar mais, o que incendiou o resto do país também — avalia Gabi, uma das organizadoras das jornadas de junho em Porto Alegre.
Como em pouco tempo os aumentos também acabariam revertidos em outras cidades, logo se abriu espaço para outras demandas e para a presença de grupos com outros objetivos. Na Capital, manifestações passaram a ser convocadas nas mesmas datas pelo grupo chamado Porto Alegre Vai Parar. Em pouco mais de uma semana, conseguiram cerca de 50 mil confirmações no Facebook para o protesto de 24 de junho, por exemplo – três vezes mais do que o Bloco de Luta no mesmo período.
— Éramos cinco pessoas que se encontraram por acaso e acabamos formando o grupo pela internet mesmo porque vimos um momento de mudança no país. Acho que tínhamos algumas coisas da esquerda, essa parte revolucionária, mas também brigávamos por outras coisas como o fim da corrupção e contra os aumentos de impostos — comenta a advogada Bianca Uequed, uma das fundadoras do grupo apartidário que rivalizou com o Bloco de Luta mas depois acabou se desarticulando por receio da violência nas ruas.
Internamente, o Bloco de Luta discutia se deveria interromper as convocações diante da chegada de novos participantes e bandeiras ou seguir insuflando a mobilização popular. Em São Paulo, quando as pautas começaram a se diversificar, assim como o perfil dos participantes, o MPL decidiu se retirar das articulações. Mas, na capital gaúcha, o entendimento foi diferente.
— Aqui, foi decidido seguir na rua disputando espaço com os outros grupos — revela Fogaça.
Cronologia das manifestações
Janeiro de 2013
- Dia 21 — Bloco de Luta pelo Transporte Público realiza primeiro protesto do ano contra reajuste das passagens e reúne algumas dezenas de manifestantes diante da prefeitura, com pouca repercussão.
- Dia 29 — Novo protesto, outra vez com mobilização modesta.
Fevereiro
- Dia 18 — Terceiro protesto chamado pelo Bloco de Luta via Facebook, diante da prefeitura, com aumento no número de participantes. Em seguida, saem em marcha.
Março
- Dia 6 — Protesto na Praça Argentina, na região central, com desencontro entre organizadores: parte dos manifestantes sai em caminhada antes do previsto. Nos dias seguintes, haveria pelo menos outras três manifestações.
- Dia 25 — No primeiro dia de vigência do novo valor da passagem de ônibus em Porto Alegre, então em R$ 3,05, manifestantes fazem um ato pela manhã na Avenida João Pessoa e, no final da tarde, bloqueiam um trecho da Ipiranga para protestar contra o reajuste. Há confusão entre militantes, agentes da EPTC e Brigada Militar.
- Dia 27 — O protesto ganha corpo. Manifestantes atiram pedras, bolas de gude e tinta no prédio da prefeitura da Capital. O então secretário de governança do município, Cézar Busatto, é atingido por tinta vermelha. O episódio ganha ampla repercussão na imprensa e via redes sociais.
Abril
- Dia 1º — Segue o ciclo de protestos, desta vez uma caminhada partindo da prefeitura ao som de gritos como "Quem não pula quer aumento". Em bom número, os manifestantes ocupam vias inteiras. O prefeito José Fortunati recebe entidades estudantis, mas exclui integrantes do Bloco de Luta.
- Dia 4 — No mesmo dia em que uma liminar derruba o aumento da passagem, a partir de uma ação cautelar de Pedro Ruas e Fernanda Melchionna (Psol), um grande protesto é realizado mesmo sob chuva diante da prefeitura. Uma das razões alegadas para a rapidez na análise da ação é o "clamor popular" nas ruas da Capital.
- Dia 11 — O quarto protesto em 15 dias tem início do Parque da Redenção e vai até a Associação dos Transportadores de Passageiros (ATP), cujo prédio é alvo de pedras apesar de apelos de organizadores para não haver depredações. O grupo pede a devolução de R$ 72 milhões das empresas de ônibus sob alegação de cobranças abusivas anteriores.
- Dia 23 — O movimento defende que o valor da passagem seja reduzido para R$ 2,60 e faz novo protesto diante da prefeitura. O prédio é pichado, e líderes apelam aos presentes para que mantenham a calma.
Junho
- Dia 6 — Inspirado na capital gaúcha, o Movimento Passe Livre (MPL) convoca protesto em São Paulo contra aumento de R$ 0,20 nas tarifas de ônibus. Um cartaz diz "Acabou o amor, São Paulo vai virar Porto Alegre", e outro "Vamos repetir Porto Alegre". O ato termina em confronto com a polícia e 15 detidos. Rio de Janeiro, Goiânia e Natal registram atos semelhantes.
- Dia 13 — Novo ato em São Paulo sofre forte repressão policial. Ao menos dois jornalistas são atingidos nos olhos por balas de borracha. Dezenas de manifestantes são feridos, e pelo menos 240, detidos. A violência estimula protestos ainda maiores país afora.
- Dia 17 — Dia de intensos protestos, com mais de 300 mil pessoas em várias cidades do país. Em Brasília, manifestantes ocupam a cobertura do Congresso. Porto Alegre reúne cerca de 20 mil pessoas, com relatos de depredações e repressão da BM. As pautas se tornam mais difusas e genéricas, incluindo causas como saúde e educação.
- Dia 20 — Pico do ciclo nacional de protestos, com mais de 1 milhão de pessoas nas ruas do país. Em Porto Alegre, após início pacífico, ato termina em confronto com a BM e depredações. Em São Paulo e no Rio, parte dos manifestantes hostiliza quem leva bandeiras de partidos. No Rio, foto aérea mostra aumento do uso do verde e do amarelo - que marcaria atos da direita nos anos seguintes.
- Dia 21 — Acuada, a presidente Dilma Rousseff faz um pronunciamento em cadeia nacional propondo ações como elaboração de plano nacional de mobilidade, uso de royalties do petróleo para educação, reforço no atendimento do SUS, entre outras ações que seriam formalizadas dias depois na forma de cinco pactos.
- Dia 22 — Protestos continuam. Em Belo Horizonte, ato com 60 mil pessoas termina em confronto com a polícia. Salvador também registra confusão antes de jogo do Brasil pela Copa das Confederações.
- Dia 24 — Em Porto Alegre, mais de 10 mil pessoas protestam, mas o ato escancara divisões: um grupo ligado ao Bloco de Luta, mais voltado às pautas de esquerda, e outro que se propõe apartidário e foca no combate à corrupção divergem sobre demandas e sobre o percurso da marcha. A esquerda recorre a um caminhão de som para tentar manter o protagonismo.
- Dia 27 — Manifestações em Porto Alegre, Fortaleza e Salvador. Na capital gaúcha, o ato se concentra na frente do Piratini de forma pacífica. Ao final, novamente uma minoria promove atos de vandalismo e entra em confronto com a BM. A partir daí, as convocações passam a minguar.