A reportagem de GZH exibindo a descoberta de um conjunto formado por 25 cartas escritas e assinadas pelo ex-presidente Getúlio Vargas, a maior parte delas inéditas e endereçadas ao seu irmão Protásio Vargas, segue chamando a atenção de leitores, pesquisadores, historiadores e especialistas no tema.
As correspondências, que foram doadas em 2020 por uma pessoa na condição de anonimato ao Museu Cônego Hugo, em São Francisco de Assis, na Fronteira Oeste, abrange o período da Era Vargas (1930-1945).
Atualmente, o material se encontra com o professor Edison Hüttner, do Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), onde está sendo pesquisado e será exibido ao público a partir de 30 de maio.
GZH entrevistou um dos maiores conhecedores da história de Vargas, o jornalista Lira Neto, autor da biografia dividida em três volumes sobre o ex-presidente.
Curioso pela descoberta das correspondências, o escritor explica, na entrevista abaixo, como os episódios de 1933 envolvendo os familiares do mandatário, em Santo Tomé, estremeceram as relações diplomáticas com a Argentina.
O senhor se surpreende quando surge algo novo sobre Getúlio Vargas?
Em se tratando de Getúlio não me provoca surpresa. Apesar de ser uma descoberta fantástica essa (as 25 cartas que estão sendo pesquisadas em Porto Alegre), não é surpresa porque o Getúlio escrevia muito. O próprio arquivo do CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil) é muito volumoso. Logicamente, deve haver ainda muitos escritos por descobrir. Porque tudo o que ele vivia, registrava no próprio diário ou em cartas para familiares e amigos. Por isso que não acredito em biografia definitiva. Sempre novos documentos surgem e possibilidades de se contar determinados episódios da história. Não tenho conhecimento do conteúdo dessas cartas, mas pelo pouco que li compreendo que devem ser muito valiosas. Pelo que vi destacado há aquele episódio nebuloso de Santo Tomé. É um dos episódios mais nebulosos, uma vez que o próprio Itamaraty não tem documentação mais exaustiva em relação a isso. Quando eu estava trabalhando na pesquisa da biografia do Getúlio, as minhas fontes em relação a esse episódio foram praticamente todas no Ministério das Relações Exteriores da Argentina e na imprensa argentina da época. A imprensa do Brasil estava sob censura e esse episódio não foi explorado a contento.
O que significa, na relação entre Brasil e Argentina, o primeiro episódio da tentativa de invasão a Santo Tomé em 1933? Gerou um incidente diplomático de fato?
Chegou a complicar bastante a situação diplomática no país. E é muito revelador do modus operandi um pouco da família Vargas na época. Tinha o jornalista Jovelino Saldanha, que era um adversário político e escrevia textos contra os Vargas de uma forma geral. Precisou se refugiar no outro lado da fronteira, atravessou o rio e foi para Santo Tomé, onde ficou foragido. O Bejo (Benjamin Vargas, irmão do presidente) foi lá, atravessou o rio para buscar o adversário. Ou seja, rompendo qualquer lógica diplomática de você ter um inimigo político e que poderia, por vias judiciais, fazer alguma solicitação, mas não. A família Vargas, naquele momento, não tomou nenhum cuidado. Foram lá e atravessaram a fronteira para pegar o Jovelino. Foi neste momento que se deu esse incidente, quando a guarda da fronteira do país vizinho, logicamente, reagiu a essa entrada sem permissão no território soberano da nação. Então se deu esse primeiro incidente, que teve um resultado trágico, inclusive com as mortes dos sobrinhos do Getúlio.
O governo federal teve inclusive de indenizar a Argentina pelo estrago, um negócio maluco em que saquearam a cidade inteira.
LIRA NETO
Autor da biografia sobre Vargas
O senhor chegou a se surpreender com essa história quando pesquisava para escrever a biografia?
Ah, sim. Quando eu consultei o material do CPDOC, lendo a correspondência do Getúlio, me deparei com um conjunto de cartas e memorandos trocados entre Getúlio e seus familiares. E também entre as autoridades dos dois países. Fui ao Itamaraty e percebi que não havia documentação oficial sobre isso. Logicamente, isso aumentou o meu interesse e fui junto às autoridades argentinas. Lá, vi que o material foi preservado, com muitos detalhes. Todo o inquérito que me possibilitou inclusive reproduzir a cena com bastante detalhes, como foi o ataque, o embate corporal e os tiros. Tudo isso está na documentação argentina. E a imprensa argentina cobriu isso de uma forma muito detalhada. Os principais jornais da Argentina deram muito destaque a isso. Foi um tema que me interessou muito, principalmente para mostrar como se dava a política regional gaúcha, mais especificamente no interior do RS nesse tempo, em relação aos poderosos do período. Aí entra, na segunda invasão, como um ato de revanche pela morte dos familiares, um personagem que vai fazer toda a diferença mais tarde que é o Gregório Fortunato (chefe da guarda pessoal de Vargas). O episódio que junta os familiares do Getúlio e Fortunato com invasão ao território argentino, como pesquisador, me interessou e dediquei um capítulo inteiro a isso. Na época, a Revista Piauí me pediu para adiantar um trecho do livro e não tive dúvidas: foi o episódio da invasão de Santo Tomé, que eles (editores da publicação) publicaram trechos enormes, quase o capítulo todo. De fato é algo que chama a atenção. Mais do que simplesmente ser coisa anedótica, pitoresca e episódica, é muito revelador da forma como se davam as relações de poder no interior gaúcho desse período. E de como isso teve implicações federais, uma vez que se tratou de um incidente que, por pouco, não resvalou em consequências maiores. O governo federal teve inclusive de indenizar a Argentina pelo estrago, um negócio maluco em que saquearam a cidade inteira. Segundo consta na pouca documentação rarefeita no Brasil, e se presume do material colhido na Argentina, Getúlio teve de utilizar recursos do fundo do café para poder indenizar o país vizinho. Um incidente de fronteira e familiar resvala para uma questão diplomática de maior vulto. Isso é muito revelador de como se dá a política e as relações de poder ao longo da história brasileira.
Uma das cartas descobertas no RS é uma troca de mensagem entre Getúlio e Protásio Vargas sobre a prisão de Luís Carlos Prestes em março de 1936. Na correspondência, o presidente é até irônico e se refere ao adversário político como "nosso amigo". O que representa uma carta dessas aparecendo quase 90 anos depois?
Isso é também muito importante. Ou seja, eu prezo muito as fontes epistolares, acho que são muito reveladoras. Porque contam o outro episódio da história não pelas fontes oficiais. É a história contada pelos próprios protagonistas. No caso dessa relação de Getúlio com o Prestes, tem sempre um interesse histórico grande porque sabemos dos desdobramentos de tudo isso. Naquele momento em que Prestes é preso, Getúlio utiliza não só a desarticulação do movimento de 1935 e da própria prisão do Prestes como um dos pretextos para a decretação do Estado Novo. Isso ganha relevância e acho importante que esse conjunto documental, ora descoberto, seja incorporado às pesquisas sobre Getúlio. E quem sabe possa, não mudar a história, mas dar detalhes relevantes para que possamos compreender um pouco mais da personalidade tão ambígua, polêmica e controversa do Getúlio.
A partir de suas pesquisas para escrever o livro, como o senhor analisa as características do presidente Getúlio Vargas pelas cartas?
O Getúlio sempre foi considerado pelos contemporâneos uma pessoa muito misteriosa, uma esfinge, alguém que, ao mesmo tempo que irradiava um sorriso e simpatia pública, era, do ponto de vista pessoal, muito reservado. Era uma pessoa que cultivava essa ambiguidade e dificuldade de se deixar penetrar nas verdadeiras intenções. Então, as cartas são muito reveladoras. Porque é o Getúlio contando para pessoas próximas o que passava pela cabeça dele, quais eram as suas propostas, as suas intenções e os seus pensamentos. Agora temos de ter sempre uma reserva, como pesquisador, porque aquela velha máxima, quase um axioma de que as cartas não mentem jamais, as cartas mentem e omitem também. As cartas são escritas com determinados interesses. Nós pesquisadores, desde a pesquisa como jornalista ou como pesquisador da história, sabemos que toda fonte é produzida com determinado interesse. Ela não é imparcial, não é a história tal e qual ocorreu, ela é uma versão da história. No caso do Getúlio, que escreveu tanto e de forma tão volumosa, é muito importante nós confrontarmos essas cartas escritas com os acontecimentos quando eles foram narrados pela grande história. Como essa micro-história cotidiana e da vida privada do Getúlio é reveladora de muitas facetas de uma história maior e pública. Tudo o que o Getúlio escrevia, ele mandava a filha Alzira arquivar. É muito relevante e impressionante que ainda existam por aí cartas, como essas, que acabaram não sendo arquivadas e escaparam do arquivo da Alzira. Há muita coisa a ser descoberta. Tenho absoluta certeza disso. E uma biografia é isso: sempre uma obra em processo. Ou seja, você nunca vai dar conta de toda documentação, e essa documentação vai aparecendo aos poucos. Quem sabe com base nessas cartas, e a partir da leitura delas, eu possa vir a acrescentar alguns bons parágrafos em uma possível reedição do livro. O primeiro volume já completou 10 anos de publicação. Por isso, repito o que disse no começo: não acredito em biografias definitivas. Não existe isso. Exatamente porque documentos são descobertos e mais do que isso: os mesmos documentos podem ser lidos com outra luz, perspectiva e angulação. Há sempre muito a se descobrir, principalmente em um personagem tão magnífico, fantástico e tão controvertido até hoje como o Getúlio. Toda discussão e pauta contemporânea passam por Getúlio. Legislação trabalhista, Petrobras, Previdência, tudo isso passa pela chamada Era Vargas. É um personagem de grande interesse e sempre será pelo que ele significou. E aqui evoco a figura do mestre Boris Fausto, recentemente falecido e de quem tive a honra e o prazer de ter um texto dele na quarta capa do primeiro volume, e que dizia: "Getúlio, para o bem e para o mal, é o personagem mais importante da história republicana brasileira".