No mesmo dia em que Jair Bolsonaro determinou que um militar viajasse em avião da Força Aérea Brasileira (FAB), de Brasília até Guarulhos (SP), para retirar as joias apreendidas pela Receita Federal, o gabinete do então presidente solicitou que os itens avaliados em R$ 16,5 milhões fossem cadastrados no sistema federal como "acervo privado", já que, segundo a justificativa, se tratava de presente do regime saudita para a então primeira-dama Michelle Bolsonaro.
Pelos planos do governo, os diamantes deveriam ser retiradas da alfândega de Guarulhos naquele mesmo dia, 29 de dezembro de 2022, antevéspera do encerramento do mandato de Bolsonaro. No dia seguinte, ele e Michelle embarcariam para os Estados Unidos.
Documento ao qual o jornal O Estado de S. Paulo teve acesso mostra que o pedido de cadastramento partiu da Chefia de Ajudância de Ordens da Presidência, que era comandada pelo "faz-tudo" de Bolsonaro, o tenente-coronel Mauro Cid. Não cabia a Cid fazer esse cadastramento, mas ao Gabinete Adjunto de Documentação Histórica.
O pedido indica que o então presidente não tinha a intenção de repassar o bem para o acervo público da Presidência da República, o que significaria manter as joias sob controle do Estado. A tentativa de retirada dos itens, no entanto, acabou não ocorrendo.
O auditor fiscal da Receita em Guarulhos, Marco Antônio Santana, negou entregar ao emissário de Bolsonaro o conjunto de colar, par de brincos, anel e relógio da marca suíça Chopard.
O Planalto não confirmou se os dados referentes às joias permanecem no sistema do Gabinete Adjunto de Documentação Histórica.
Imagem eleitoral
O histórico de atos e relatos do caso das joias mostra que teria havido, por parte da cúpula do governo Bolsonaro, uma série de medidas não só para reaver as joias retidas, mas para impedir o vazamento de qualquer informação em ano eleitoral. Bolsonaro foi candidato à reeleição em 2022.
Diversas tentativas de recuperar o conjunto de diamantes foram registradas desde o dia em que a comitiva do então ministro de Minas e Energia, almirante Bento Albuquerque, desembarcou em Guarulhos e tentou ingressar no país, de forma ilegal, com os itens.
Nas semanas seguintes, Bolsonaro acionou na ofensiva para retomar as joias os ministérios de Minas e Energia e de Relações Exteriores, militares e o comando da Receita. Tudo isso, porém, foi feito de maneira bastante discreta.
Os cuidados para controlar as informações envolveram, ainda, comunicados ao governo saudita. Em 22 de novembro de 2021, quase um mês depois da apreensão das joias, Bento Albuquerque ocultou o episódio em carta endereçada ao príncipe árabe Abdulaziz bin Salman Al Saud, ministro de Minas e Energia daquele país.
No comunicado, o almirante diz que os presentes tinham sido incorporados à "coleção oficial brasileira", conforme determina "a legislação nacional e o código de conduta da administração pública".
Segundo estojo
A mesma estratégia foi adotada em relação ao segundo presente da Arábia Saudita que entrou ilegalmente no país. Por discrição, o estojo, também da marca Chopard, com itens como relógio, caneta e abotoadoras, ficou guardado por mais de um ano no gabinete do Ministério de Minas e Energia. O pacote só foi entregue no Palácio da Alvorada em 29 de novembro de 2022. O recibo da Documentação Histórica do Palácio do Planalto traz um item que questiona se o objeto foi visualizado por Bolsonaro. A resposta diz: "Sim".
Enquanto isso, o conjunto de R$ 16,5 milhões seguiu nos cofres da alfândega, em Guarulhos. Durante um ano, auditores da Receita sofreram pressões do então chefe do órgão, Julio Cesar Gomes, aliado da família Bolsonaro. De acordo com relatos, havia um controle ostensivo para que o caso não fosse descoberto.
A entrada ilegal das joias no Brasil é investigada pela Polícia Federal e Ministério Público Federal. O procedimento tramita em sigilo na Procuradoria em Guarulhos.