Promessa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a regulamentação trabalhista dos entregadores e motoristas de aplicativos desafia o poder público, os sindicatos e as empresas a encontrarem um meio-termo para essa complexa relação laboral. O Ministério do Trabalho anunciou a criação de uma mesa nacional de negociação entre as partes e os próximos encontros devem ocorrer ainda neste mês e no próximo.
O objetivo é elaborar uma proposta que possa ser enviada ao Congresso, mas há muitas divergências em relação à forma e à correção da remuneração, além do reconhecimento de eventual vínculo empregatício e da política de banimento das plataformas contra trabalhadores.
O único ponto em que existe sinal de consenso é a inclusão dos entregadores e motoristas na Previdência Social, com a realização de contribuições mensais que lhes permitam ter a aposentadoria por tempo de serviço, licença-maternidade e, principalmente, o auxílio-doença, uma garantia de manutenção de renda em caso de acidentes graves de trânsito ou outras enfermidades.
— As empresas não têm qualquer obrigação. Elas recebem o valor da corrida do cliente, retiram a parte delas e entregam o resto para o trabalhador. Não pagam absolutamente nada fora disso. É uma situação extremamente complicada e muita gente está nesse contexto — afirma o procurador Tadeu Henrique Lopes da Cunha, do Ministério Público do Trabalho (MPT), onde lidera a Coordenadoria Nacional de Combate às Fraudes nas Relações de Trabalho.
O ministro do Trabalho, Luiz Marinho, afirmou, em entrevista ao jornal Valor Econômico na segunda-feira (6), que se a Uber quiser deixar o Brasil devido a proposta de regulamentação do serviço por aplicativos, o governo federal pode chamar os Correios para substituir a empresa norte-americana.
— Aplicativo se tem aos montes no mercado — afirmou Marinho, ao Valor Econômico.
Premissas
A Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), representante de gigantes do setor como Uber, 99, Zé Delivery, iFood, Lalamove e Amazon, demonstra disposição ao debate e considera relevante a existência de um regramento trabalhista, desde que balizado por premissas consideradas modernas. A entidade estima que 1,4 milhão de pessoas no Brasil geram renda nas plataformas.
— A gente não é do time que não quer nada. Entendemos que temos de evoluir em algumas questões — diz André Porto, diretor-executivo da Amobitec.
O governo Lula já indicou que incluir os trabalhadores de aplicativos na Previdência Social é uma das prioridades. No modelo atual, um motoboy que se acidenta e precisa de tempo de repouso após o socorro hospitalar, corre o risco de ir para casa sem renda: deixa de receber das entregas por estar impossibilitado de guiar o veículo e, como não contribui, fica sem o afastamento remunerado garantido pela Previdência aos trabalhadores formais.
Para o futuro, a inclusão também significa a chance de aposentadoria por tempo de serviço. Dos quatro sindicalistas ouvidos pela reportagem, todos são favoráveis à medida. A Amobitec também avalia a iniciativa como positiva.
O que terá de ser definido pela mesa de negociação do Ministério do Trabalho é a categoria de contribuinte previdenciário em que os entregadores e motoristas irão se encaixar: fala-se em microempreendedor individual (MEI), autônomo, empregado fixo ou intermitente com registro formal na carteira de trabalho e até em uma nova categoria a ser criada, dependendo do ponto de vista.
— A gente se coloca como facilitador na parte burocrática, de fazer a inscrição previdenciária e também o recolhimento. E nos colocamos na posição de copartícipe na contribuição. As plataformas se dispõem a contribuir com parte disso. O quanto vai ser é discussão para ser feita um pouco mais à frente — avalia Porto.
Vínculo em avaliação na Justiça
Para o Ministério Público do Trabalho (MPT), os aplicativos não são meros intermediadores. O órgão de fiscalização já moveu nove ações civis públicas na Justiça do Trabalho pedindo o reconhecimento de vínculo empregatício entre trabalhadores e plataformas. Uma delas foi extinta porque a Cabify deixou a operação no Brasil e outra empresa fez acordo. Outras sete ações seguem em andamento, nenhuma com trânsito em julgado, e os resultados são distintos: já houve reconhecimento e rejeição do vínculo.
No entendimento do MPT, os entregadores e motoristas deveriam se enquadrar como empregados comissionistas, no regime da CLT, recebendo conforme a produção e com recolhimento previdenciário, fundo de garantia, férias, 13º salário e limite de jornada.
— A plataforma aproxima, mas ela também fixa valor e define a comissão dela. Se a pessoa não entra muito no aplicativo, fica mandando mensagem dizendo que vai bloquear. O trabalhador não define nada. É uma série de situações que implica controle. E quem exerce controle é o empregador, o dono do poder diretivo — diz o procurador Tadeu Henrique Lopes da Cunha.
Entidades apontam remuneração baixa
Entre representantes dos trabalhadores, a revisão do modo de remuneração e uma relação mais justa são pautas prioritárias. Atualmente, eles recebem a tarifa por corrida que é oferecida pelo aplicativo, conforme cálculo do algoritmo da ferramenta. Presidente da Frente de Apoio Nacional dos Motoristas Autônomos (Fanma), Paulo Xavier destaca que as empresas de aplicativos chegam a reter até 50% do valor dos serviços.
— Hoje, no carro, o custo do quilômetro rodado é de R$ 1,10 ou R$ 1,15. E tem corridas em que recebemos R$ 1,10 ou R$ 1,20 pelo quilômetro rodado. São situações em que praticamente não há ganho. Vamos levar para o Ministério do Trabalho a ideia da hora mínima garantida — afirma Xavier, cuja entidade tem 8 mil motoristas associados na Grande Belo Horizonte.
O modelo citado por ele asseguraria aos entregadores e motoristas o recebimento de um valor fixo pela disponibilidade a cada hora, o que compensaria as taxas das corridas que oferecem ganhos baixos.
Tarifa
Carina Trindade, presidente do Sindicato Individual de Motoristas de Transporte por Aplicativo do Rio Grande do Sul (Simtrapli-RS), pretende apresentar proposta semelhante: a da tarifa nacional mínima. Seria um valor básico a ser pago aos trabalhadores, sobretudo nas corridas de até três quilômetros, como forma de combater as tarifas baixas e reduzir a discrepância na remuneração oferecida pelos aplicativos para serviços semelhantes.
— A pauta dos trabalhadores começa com o reajuste, seja remuneração por hora, por quilômetro rodado, pagamento de salário ou outro nome que venham a dar. Não conseguimos pensar em qualquer situação fora de acordos coletivos com as empresas. Seria o pontapé inicial. Temos de buscar um meio-termo para acabar com a precarização. É uma das atividades mais letais do Brasil, que mata, sequela e aleija — alerta Gilberto Almeida Santos, o Gil, presidente do Sindicato dos Motoboys e Motoentregadores de São Paulo e Região (SindimotoSP), entidade que tem cerca de 18 mil filiados.
A gente busca direitos básicos para o motorista de aplicativo, mas sem necessariamente enquadrar na CLT. A maioria não quer vínculo empregatício e carteira assinada.
CARINA TRINDADE
Presidente do Simtrapli-RS
As eventuais mudanças nas formas de pagamento passam pela discussão sobre a relação entre as empresas de aplicativos e os trabalhadores. Embora existam defensores da adoção da Consolidação das Leis do Trabalho, a maioria é relutante quanto a essa solução.
— A gente busca direitos básicos para o motorista de aplicativo, mas sem necessariamente enquadrar na CLT. A maioria não quer vínculo empregatício e carteira assinada. Não abrimos mão de ser livres, de poder trabalhar com qualquer plataforma e no horário que quisermos. Isso permite ter o aplicativo como complemento de renda — afirma Carina, do Simtrapli-RS, que reúne 500 motoristas associados.
Plataformas rebatem ganho reduzido
Diretor-executivo da Amobitec, André Porto rebate a alegação de que as remunerações são excessivamente baixas. Dados da entidade apontam que os entregadores que ficam logados nas plataformas de 35 horas a 40 horas por semana recebem cerca de dois salários mínimos ao mês.
— É legítimo o pleito de ganhar mais, mas o valor não está fora da realidade brasileira. A maioria dos entregadores tem nível médio de escolaridade. A remuneração é relativamente adequada — afirma Porto.
Já no caso dos motoristas de passageiros, afirma ele, os números da Amobitec apontam remuneração mensal entre quatro e cinco salários mínimos para os que alcançam a carga horária mencionada.
É legítimo o pleito de ganhar mais, mas o valor não está fora da realidade brasileira. A maioria dos entregadores tem nível médio de escolaridade. A remuneração é relativamente adequada.
ANDRÉ PORTO
Diretor-executivo da Amobitec
O dirigente afirma que a flexibilidade para o trabalhador escolher os dias e horários em que irá atender pelos aplicativos é um aspecto valorizado na relação. Ele explica as razões que levam as empresas a se oporem, até o momento, ao pagamento de hora mínima pela disponibilidade.
— Posso logar na plataforma e ficar conversando com você. O cara está no sofá de casa, logado. Como você vai remunerar isso? E se o cara ficar logado à tarde? Não é um pico. Vai fazer uma entrega a tarde toda. Não tem demanda. Como remunerar? É difícil esse tema chegar num ponto factível _ avalia Porto, indicando preferência pela manutenção do sistema de pagamento de tarifa a cada corrida.
A respeito de ganhos mínimos, como a definição de um patamar básico de remuneração a ser respeitado, Porto rebate com o argumento de que, enquanto um motorista pode trabalhar os 30 dias do mês, outro pode fazer corridas em apenas dois. Seriam distorções incorrigíveis para o modelo das plataformas, pontua.
O diretor da Amobitec afirmou que as plataformas têm canais de relacionamento para ouvir os entregadores e motoristas e estão preocupadas em construir políticas mais transparentes de cancelamentos.
— É fato que muitos dos usuários (trabalhadores), às vezes, tentam burlar as normas de utilização, e aí você precisa tirar essa pessoa da plataforma, seja por questões de segurança e do próprio negócio. Não adianta você ter alguém logado na plataforma simplesmente para cancelar pedidos — avalia.
Porto destacou que as empresas associadas da Amobitec — as maiores do ramo — já oferecem aos motoristas e entregadores seguros por acidente e morte.
Banimentos sob críticas
Outra pauta importante no ponto de vista dos trabalhadores é rever política de banimento das plataformas. Eles desejam regulamentação em que tenham mais oportunidade e prazo à apresentação de defesa. E que suas justificativas sejam analisadas em pé de igualdade às denúncias de clientes.
A reclamação é de que, hoje, as plataformas bloqueiam os entregadores e motoristas de forma unilateral, de supetão e sem direito ao contraditório. Há relatos de pessoas que são impedidas de trabalhar e ficam empenhadas com prestações de carros e motos.
Os bloqueios costumam acontecer por violações de políticas de uso, como comportamento inadequado ante passageiros ou cancelamento frequente de corridas, o que causa transtorno aos clientes.
— Tem passageiro que relata coisas que não aconteceram. Muitos dos cancelamentos se dão em áreas de risco ou em chamadas feitas por perfis de mulheres, mas, quando chega no local, tem um homem esperando para embarcar — argumenta Carina Trindade, presidente do Sindicato Individual de Motoristas de Transporte por Aplicativo do Estado (Simtrapli-RS).
Ela propõe que as plataformas, no aspecto da segurança, tenham um cadastro mais rigoroso dos clientes. A dirigente sindical diz que é comum ver pessoas usando contas em nome de terceiros para fazer pedidos de transporte. Para Carina, isso significa um risco, sobretudo para motoristas do gênero feminino.
Ricardo Patah, presidente nacional da União Geral dos Trabalhadores (UGT), afirma que a principal preocupação da entidade é a saúde. Somente em 2022, morreram 405 motociclistas na cidade de São Paulo.
— Idealizamos a faixa azul em São Paulo, exclusiva para motos. São ações que podemos desenvolver sem ônus para empresas e trabalhadores. Ninguém está preocupado com a vida — avalia Patah.
Na faixa azul demarcada na Avenida 23 de Maio, na zona sul de São Paulo, não houve registro de mortes de motociclistas em 2022. Nos três anos anteriores, entre 2019 e 2021, ocorreram 12 óbitos no local.
GZH contatou o Ministério do Trabalho para fazer questionamentos sobre a regulamentação, mas não houve resposta até o fechamento desta reportagem.