A impressão de que a história se repetirá quando o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, subir a rampa do Palácio do Planalto neste domingo (1º), exatos 20 anos após cumprir esse trajeto pela primeira vez, é verdadeira apenas em parte.
Se o eleito e a cadeira a ser ocupada são os mesmos, o país que Lula vai encontrar é bastante diverso daquele de duas décadas atrás. A maioria dos indicadores econômicos fundamentais é melhor hoje do que ao final de 2002, como índices de inflação e de juros mais baixos e reservas internacionais mais robustas. Mas o novo presidente também terá de lidar com desafios sociais representados por milhões de brasileiros de volta à insegurança alimentar, uma sociedade dividida e um cenário externo marcado pela guerra na Ucrânia e por uma pandemia duradoura.
– Em alguns aspectos, os desafios são maiores hoje, mas em outros eram maiores naquela época. A inflação está próxima de 6%, enquanto em 2002 havia fechado em 12%, e a gente vinha de uma crise cambial que trouxe grandes problemas para o real – observa o economista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Maurício Weiss.
Para o também professor da Faculdade de Economia da UFRGS Marcelo Portugal, o quadro macroeconômico hoje é mais favorável sob qualquer ângulo que se observe.
– Duas décadas atrás o país não tinha reservas internacionais, o balanço de pagamentos (transações comerciais com outros países) era deficitário, faltavam dólares a ponto de o Fernando Henrique (Fernando Henrique Cardoso, presidente à época) ter precisado fazer um acordo de empréstimo com o FMI (Fundo Monetário Internacional) para sanar a falta de moeda estrangeira. Hoje temos reservas de mais de US$ 300 bilhões, superávit na balança, recebemos investimentos do Exterior – analisa Portugal.
Ao longo da gestão de FHC, o governo buscou três empréstimos junto ao FMI em razão da fragilidade do país diante de um quadro internacional abalado por crises em países como Rússia e Argentina, os atentados de 11 de setembro nos EUA e uma desaceleração na economia global. Weiss observa, porém, que logo após Lula tomar posse, o país começou a se beneficiar da disparada econômica da China e da crescente demanda por matérias-primas.
Isso favoreceu o acúmulo das reservas internacionais do Brasil, rico em recursos naturais necessários à expansão dos orientais. O acúmulo de divisas, capaz de proteger as finanças públicas de instabilidades globais, saltou de US$ 37 bilhões no final do mandato de Fernando Henrique para US$ 331 bilhões em novembro deste ano.
Já a saúde fiscal do país se encontra em um nível semelhante ao daquela época. Um dos termômetros empregados para medir a febre de gastos do governo é a proporção da dívida líquida do setor público (o que o país deve menos o que tem a receber) sobre o Produto Interno Bruto (PIB). Um percentual muito elevado representa risco de desequilíbrio nas contas.
Temos hoje dezenas de milhões de pessoas passando fome. Isso é mais urgente do que qualquer outra coisa
SÉRGIO PRAÇA
Professor da FGV
Essa relação estava próxima de 60% há 20 anos, chegou a cair abaixo de 40%, e agora voltou ao patamar anterior em razão da pressão exercida por fatores como a pandemia – que exigiu ampliação do desembolso público para atender a população.
Outro índice importante, o percentual de desemprego é mais difícil de ser comparado com o período em que Lula foi eleito pela primeira vez em razão de mudanças de metodologia ocorridas ao longo do período.
O que se sabe com certeza é que o número de trabalhadores informais está entre os mais altos já observados: oscila próximo de 40 milhões de pessoas sem carteira assinada e representa um dos principais desafios para o próximo mandato.
Outro problema à espera de solução é o universo de brasileiros que voltou a enfrentar o fantasma da fome. Uma série histórica iniciada em 2004 apontava 9,5% da população com insegurança alimentar grave, cifra que disparou para 15,5% agora e representa 33 milhões de pessoas.
– Temos hoje dezenas de milhões de pessoas passando fome. Isso é mais urgente do que qualquer outra coisa. Políticas sociais de modo geral, como bolsa-família, investimentos em políticas de educação, pesquisa, tudo isso é tão prioritário que por essa razão já começou a ser tratado agora para que, em janeiro, exista um orçamento condizente com o cenário de crise – avalia o professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV) Sérgio Praça.
Desafios sociais e políticos são maiores
Um dos principais desafios que marcam a largada do terceiro mandato do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, é um clima interno bem mais conturbado em comparação ao cenário na virada para 2003.
A população brasileira ampliou o fosso social entre direita e esquerda, os militares voltaram a ter atuação de cunho político, e o Congresso acumulou poderes desde que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso consolidou o presidencialismo de coalização no país – modelo que depende da costura de um acordo político com os deputados e senadores, mediante a oferta de cargos e recursos, para manter a governabilidade.
– Duas décadas atrás, o país não estava polarizado de maneira radical como agora – observa o cientista político e professor da UFRGS Paulo Peres.
No segundo turno da eleição de 2002, seis em cada 10 brasileiros que optaram por um dos concorrentes escolheram Lula na disputa com o tucano José Serra. Agora, o candidato vitorioso contou com uma pequena margem de 50,90% dos votos válidos contra 49,10% em favor do derrotado Jair Bolsonaro (PL) – retratando numericamente a divisão da sociedade brasileira.
Essa cisão também se expressa em atos de intolerância e violência, como manifestações que contestam o resultado das urnas e a tentativa de um radical bolsonarista de promover um ato terrorista em Brasília por meio da explosão de um caminhão de combustível no final do ano.
Outro fator novo em comparação ao primeiro mandato de Lula é a postura dos militares. Na estreia do PT na presidência, fazia menos de 20 anos que o país havia reconquistado a democracia. Exército, Marinha e Aeronáutica se mostravam conformados com o retorno à rotina da caserna e ao silêncio sobre temas políticos. Isso mudou.
– Lula assumiu pela primeira vez com os militares recolhidos. Agora, vivemos uma democracia militar, em que estão ocupando o governo. Vão sair e se recolher como antes? – questiona Peres.
Para o cientista político, o fato de o Exército aceitar a manutenção dos acampamentos que contestam o resultado da eleição diante das portas de seus quartéis pode ser interpretado como uma tentativa de demonstrar força. O Congresso também ganhou mais poder no mandato de Jair Bolsonaro em relação ao passado.
– O presidencialismo de coalizão continua existindo, mas o comando passou para o presidente da Câmara. A agenda de governo passou a ser tocada pelo Arthur Lira. O chamado centrão (partidos de centro que negociam apoio político) perdeu força durante a gestão anterior, do Rodrigo Maia, mas foi às últimas consequências com Lira e vai exigir muita capacidade de negociação do Lula – analisa Paulo Peres.
O cientista político da FGV Sérgio Praça observa ainda que o PT recupera o mandato presidencial com menos margem de tolerância do que na chegada ao poder pela primeira vez.
– Quando venceu a eleição em 2002, o PT era tido como um partido de fora do sistema corrupto de financiamentos de campanha, cartéis, empreiteiras. Depois de crises como a do mensalão, em 2005, volta como um partido sob suspeita para uma parcela grande do eleitorado. Lula venceu, mas isso não significa que a população esqueceu os escândalos de corrupção – avalia Praça.
Contexto desfavorável no Exterior
Em 2002, Cristiano Ronaldo era uma jovem promessa do Sporting, os Estados Unidos buscavam apoio para derrubar o então ditador iraquiano Saddam Hussein e o euro começava a circular pelas mãos dos cidadãos europeus. O Brasil ainda festejava o quinto título de campeão mundial de futebol.
O contexto internacional era mais favorável porque não havia grandes conflitos de contestação da hegemonia americana
PAULO PERES
Cientista político da UFRGS
O mundo atravessava período de desaceleração econômica, e países como Rússia e Argentina se recuperavam de graves crises financeiras. As perspectivas, porém, eram mais favoráveis que as atuais: o PIB global logo voltaria a ganhar força, e a disparada do desenvolvimento chinês ajudaria a elevar o preço de matérias-primas abundantes no Brasil ao longo dos anos 2000. Atualmente, fatores como a guerra na Ucrânia e a persistência da pandemia contribuem para perspectivas pouco otimistas no curto prazo.
Estimativas divulgadas em outubro pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) previram um recuo do crescimento da economia planetária de 3,2%, em 2022, para 2,7%, no próximo ano. O texto do relatório aponta que "a atividade econômica mundial está passando por uma desaceleração ampla e mais acentuada do que o esperado, com uma inflação mais alta do que a observada em várias décadas. A crise do custo de vida, o aperto das condições financeiras na maioria das regiões, a invasão da Ucrânia pela Rússia e a persistente pandemia de covid-19 pesam muito sobre as perspectivas."
– O contexto internacional era mais favorável porque não havia grandes conflitos de contestação da hegemonia americana, unipolar, e os Estados Unidos dominavam porque a União Soviética tinha se dissolvido havia pouco. A situação econômica também favorecia pelo crescimento chinês e pelo aumento de demanda por commodities, que garantiram um fluxo importante de dinheiro para o Brasil – avalia o cientista político Paulo Peres.
Nas últimas semanas, enquanto a guerra na Ucrânia segue sem previsão de término, a China passou a enfrentar um tsunami de novos casos de covid em razão do fim da política de zero contaminações. Esses fatores ampliam as incertezas em relação ao futuro.
Para o economista Marcelo Portugal, além de se preocupar com o quadro global, e até mesmo em razão de eventuais dificuldades externas, o Brasil terá de fazer seu tema de casa doméstico para evitar turbulências mais adiante.
– O desafio será fazer o Estado caber dentro do PIB. A população já transfere 34% do que ela produz para o setor público, que é o tamanho da nossa carga tributária. O gasto do governo federal estava em cerca de 18% do PIB. O desafio será manter ou diminuir esse patamar – recomenda Portugal.