Em meio a manifestações de povos originários que temem a perda de direitos, o Supremo Tribunal Federal (STF) deve julgar, nesta quarta-feira (1º), um recurso sobre a demarcação de áreas indígenas no país. Os ministros irão discutir a definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena e desde quando essa ocupação deverá prevalecer, o chamado marco temporal.
A decisão servirá de parâmetro para a resolução de, pelo menos, 82 casos semelhantes, o que acirra pressões feiras por ruralistas e povos originários. Para esta quarta, o presidente da Corte, ministro Luiz Fux, anunciou que estão previstas 39 sustentações orais por partes e interessados.
A mudança pode impor um marco temporal às terras consideradas "tradicionalmente ocupadas por indígenas". Se a ideia vingar, só serão demarcadas áreas onde se comprovar a presença de populações autóctones antes de 5 de outubro de 1988 — data da promulgação da Constituição. Além disso, a demarcação deverá ser submetida à apreciação do Congresso. A revisão ainda permite o contato com povos isolados "para intermediar ação estatal de utilidade pública".
O texto proíbe a ampliação de terras indígenas já demarcadas e determina que os processos em andamento sigam as novas exigências. O documento também permite contratos de cooperação "entre índios e não-índios para a realização de atividades econômicas", o que abre portas ao garimpo e à mineração.
A decisão do STF pode trazer efeitos para comunidades em Porto Alegre, que organizaram manifestação em junho na Capital. Manifestações também ocorreram em São Paulo e Minas Gerais.
Parlamentares gaúchos divergem sobre assunto
De um lado, proprietários rurais argumentam que é preciso que exista segurança jurídica sobre o tema, e indicam que devem ocorrer desapropriações de terras caso o marco temporal seja aprovado. O presidente Jair Bolsonaro se posicionou de forma favorável à tese.
O deputado federal Giovani Cherini (PL-RS) também defende a proposta:
— Como pode faltar terra para os índios, se eles já têm 117 milhões de hectares no Brasil? Isso representa as áreas da Inglaterra e da França juntas. E como é que tem índio passando fome? Será que é terra que falta? O índio não pode arrendar, não pode deixar ter garimpo. Mas por que não pode arrendar? O índio tem de ser protegido, não tutelado.
Já para a Fundação Nacional do Índio (Funai), o caso trata de direito imprescritível da comunidade indígena, cujas terras são inalienáveis e indisponíveis. Ressalta não ser cabível a compreensão de que os direitos indígenas ao usufruto das terras, "ou quaisquer outros que a Constituição lhes confira, decorram da demarcação administrativa da área, pois os títulos de domínio referentes às terras de ocupação dos índios são inoponíveis a eles".
Do mesmo lado, a deputada federal Fernanda Melchionna (PSOL-RS) define a mudança como um "escândalo" e considera a proposta inconstitucional. Ela também reclama da falta de diálogo da Câmara com os indígenas, que, segundo ela, não foram ouvidos.
— É um ataque sem precedentes aos direitos indígenas, um escândalo, uma tentativa de retroagir ao que se tinha antes da Constituição de 1988. Tudo isso vai potencializar ainda mais conflitos e estimular a apropriação das terras indígenas por ruralistas e garimpeiros. Essas áreas, segundo a ONU, são as mais preservadas do país. É um retrocesso em todos os sentidos — afirma.
Recurso da Funai levou assunto ao STF
O caso chegou ao STF em razão de um uma reintegração de posse requerida pela Fundação do Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina (Fatma) de uma área localizada em parte da Reserva Biológica do Sassafrás (SC), declarada pela Funai como sendo de tradicional ocupação indígena.
Ao analisar a questão, o Tribunal Regional da 4ª Região (TRF-4) entendeu que não há elementos que demonstrem que as terras seriam tradicionalmente ocupadas pelos indígenas, como previsto na Constituição, e confirmou a sentença que determinou a reintegração de posse ao órgão ambiental.
No recurso ao STF, a Funai sustenta que o caso trata de direito imprescritível da comunidade indígena, cujas terras são inalienáveis e indisponíveis. Segundo a autarquia, a decisão do TRF-4 afastou a interpretação constitucional sobre o reconhecimento da posse e do usufruto de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e privilegiou o direito de posse de quem consta como proprietário no registro de imóveis, em detrimento do direito originário dos indígenas.