Em momento de tensão política elevada na Praça dos Três Poderes, Allan Lopes dos Santos é personagem central das recentes decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre canais virtuais suspeitos de fabricar e disseminar desinformação.
Investigado nos inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos, ele e outros suspeitos tiveram contas nas redes sociais Twitter e Facebook bloqueadas por decisão do ministro Alexandre de Moraes. Em transmissão ao vivo pela internet na última sexta (31), o blogueiro e apoiador do presidente Jair Bolsonaro disse que deixou o Brasil para "manter a família em segurança". Sem provas, falou sobre a existência de supostos planos de espionagem e disparou acusações. A suspeita de investigadores é de que Allan tenha tomado um voo da companhia Aeromexico no dia 27 de julho rumo à Cidade do México, partindo do aeroporto de Guarulhos.
Além dos inquéritos no STF, Allan também é investigado na CPI das Fake News no Congresso, palco em que deputados e senadores tentam desvelar suas fontes de receita e modo de operação para promover linchamentos virtuais de adversários, espalhar conspirações sobre a pandemia de coronavírus e alavancar a imagem de Bolsonaro.
Ideólogo da extrema-direita, Allan é um comunicador próximo da família presidencial, apontado em inquérito do STF como um dos integrantes do chamado gabinete do ódio. Embora a ala ideológica tenha perdido força recentemente para os militares, Allan continua tendo forte influência sobre o bolsonarismo. Sua plataforma de comunicação, o Terça Livre, é expoente da rede de apoio ao presidente e de ataque a adversários políticos e instituições. O blogueiro tem raízes no Rio Grande do Sul: começou sua operação no Vale dos Vinhedos, em Monte Belo do Sul. Nesta reportagem, GaúchaZH resgata a trajetória dos personagem e aborda as suspeitas que pesam contra ele.
Parlamentares suspeitam de vínculos de Allan com empresários e doadores
Pontas soltas no passado, na avaliação de parlamentares da CPI das Fake News, colocam em xeque a versão de que Allan dos Santos e a plataforma de comunicação Terça Livre cresceram de forma espontânea e orgânica, tendo começado em um porão residencial no Vale dos Vinhedos, no Rio Grande do Sul, com parcos recursos.
Uma dessas pontas é uma antiga versão do registro empresarial de Allan para o Canal TL Produção de Vídeos e Cursos, de nome fantasia Terça Livre, em que o e-mail de contato é o joao@jbbpar.com. O endereço eletrônico pertence ao brasileiro residente em Miami João Bernardo Barbosa, fundador da JBB Par, holding de atuação internacional.
Uma das perguntas que pairam no ar é sobre a interação entre Allan, Barbosa e a JBB Par. Ele afirmou, em depoimento à CPI, que não há nenhum relacionamento empresarial. Justificou que Barbosa é um “grande fã” do Terça Livre e que ele, como voluntário, ajudou a fazer o cadastro empresarial e a encontrar um contador no Rio Grande do Sul.
O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) pretende convocar Barbosa para explicar o seu eventual engajamento com a plataforma de extrema-direita. Randolfe argumentou que, no dia do depoimento à CPI, Allan estava com uma pasta de empresa supostamente controlada pela holding de Barbosa. “Permanece a suspeita de qual é, de fato, a relação entre o Terça Livre e a JBB Par”, defende o parlamentar, em requerimento de convocação para que Barbosa preste esclarecimentos formais à comissão.
O passar dos meses e o avanço das apurações mostraram que Allan entrou em contradição ao depor na CPI das Fake News, no Senado, em novembro de 2019. Ele disse, na ocasião, que não recebia qualquer verba do governo federal em mídia programática - modelo de publicidade em que anunciantes fecham acordos com plataformas de anúncios automáticos, os quais direcionam as propagandas e monetizam sites por visualizações. Relatório produzido pela CPI indica que, entre junho e julho de 2019, Allan recebeu recursos do governo federal via este modelo de negócio.
“Chama atenção o fato de o canal de YouTube Terça Livre TV, pertencente ao senhor Allan dos Santos, integrar a lista de veículos que receberam publicidade oficial, com 1.447 impressões. Em oitiva realizada pela CPI das Fake News, Allan dos Santos afirmou que seus veículos de comunicação ‘não recebem dinheiro da Secom’. Contudo, os dados disponibilizados pela secretaria demonstram que o canal Terça Livre TV recebeu verbas de publicidade do governo federal, por meio do programa Google Adsense. Necessário formular questionamento àquela secretaria para quantificar exatamente o montante pago ao canal em todo o período de vigência do contrato com o Google Adsense, tendo em vista que tivemos acesso apenas aos dados parciais compreendidos entre 6 de junho e 13 de julho de 2019”, diz trecho do relatório.
Fontes do ramo consultadas pela reportagem afirmam que as mídias programáticas no YouTube são ligeiramente mais rentáveis do que nos sites, onde cada visualização equivale a menos de R$ 0,01. Apesar de o blogueiro ter obtido verbas da Secom via Google Adsense, especialistas de mercado avaliam que as 1.447 impressões monetizadas pelo canal representaram recursos escassos para a sua estrutura: o grosso do financiamento do Terça Livre vem de outras fontes. Até anunciar que estava se mudando para a Cidade do México, Allan vivia em uma casa ampla em Brasília, remunerava cerca de 20 funcionários, alguns deles hospedados em sua residência, onde funcionava a operação das suas plataformas.
Nas semanas que antecederam a publicação desta reportagem, o site do Terça Livre não estava aberto para receber as publicidades programáticas - contratadas em bloco por anunciantes junto às plataformas de tecnologia, como o Google Adsense.
Na CPI, foi citada receita mensal em torno de R$ 100 mil para o Terça Livre. Allan disse que o valor provém, basicamente, dos cursos de línguas, de filosofia e de assinaturas de revista eletrônica que a empresa oferece. Ainda afirmou que uma parcela menor viria de pessoas que pagam valores para se tornarem membros do canal Terça Livre TV ou terem seus comentários marcados em destaque nos vídeos do YouTube (Superchat).
Uma fatia em torno de 10% seria originária de doações pela plataforma de financiamento coletivo Apoia-se. Nesta ferramenta, o canal de Allan pode receber doações a partir de R$ 5 para sustentar suas operações. A página do Terça Livre no Apoia-se diz, nesta segunda-feira (3), que a empresa está arrecadando R$ 10,5 mil ao mês pelo canal. Os parlamentares acreditam que o YouTube e o Apoia-se podem abrigar repasses de empresários para financiar o negócio, já que os nomes dos doadores podem ficar ocultos. Em depoimento, Allan disse: “Eu não tenho como saber quem está fazendo a doação lá”. Requerimentos aguardam votação para que Google Adsense, YouTube e Apoia-se informem a lista de eventuais mecenas e anunciantes.
O Apoia-se é uma empresa de financiamento coletivo registrada em Porto Alegre, aberta a qualquer empreendimento, aparentemente sem recorte ideológico: uma visita ao site da ferramenta revela que iniciativas de todas as naturezas, inclusive sociais e de gênero, são aceitas e destacadas.
Em fevereiro de 2020, Allan promoveu mudanças nas suas empresas: um dos CNPJs em seu nome, de final 0001-80, com endereço de localização em Monte Belo do Sul, foi extinto na Receita Federal. Dias antes, em janeiro, o CNPJ do Terça Livre que segue ativo também passou por alterações: o endereço foi trocado da serra gaúcha para Brasília, na Asa Norte. O sócio Paulo Henrique Gonçalves de Araújo foi retirado da empresa, restando como parceiro de Allan no negócio o empresário e comentarista do Terça Livre Italo Lorenzon Neto.
À época da troca de endereço, o blogueiro disse que estava de mudança para Brasília para ter mais segurança. Ele alegava ter sofrido ameaças e, na Serra gaúcha, considerava que sua família estava vulnerável. Foi uma prévia da retórica usada agora, na virada de julho para agosto de 2020, para se mudar ao México.
Natural de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro, com 37 anos completados em julho, o blogueiro se formou em filosofia no Seminário Maria Mater Ecclesiae, em Itapecerica da Serra, em São Paulo. Veio ao Rio Grande do Sul para ficar junto da esposa, de Bento Gonçalves. Em novembro de 2014, Allan criou o Terça Livre, que funcionava com transmissões semanais pela internet feitas a partir da casa em que ele morava com a família em Monte Belo do Sul, pacata cidade do Vale dos Vinhedos, limítrofe com Bento Gonçalves.
Embora descrito como sujeito discreto por pessoas que o conheceram na Serra, Allan participou, em posição destacada, de diversas manifestações pelo impeachment da então presidente Dilma Rousseff em 2015 e 2016, em Caxias do Sul. A queda da petista coincidiu com o início do crescimento das plataformas do blogueiro.
Ele também teve passagens pelos Estados Unidos, ocasiões em que conheceu Steve Bannon, estrategista político populista e de extrema-direita que já assessorou Donald Trump, e se aproximou ainda mais das ideias do guru bolsonarista Olavo de Carvalho, de quem emula a obsessão pelo cigarro e os discursos contra a suposta ameaça comunista e a liberdade de gênero.
Allan ataca adversários e aliados que se tornam incômodos para a ala ideológica do governo, integrada pelos irmãos Eduardo e Carlos Bolsonaro. Os militares são alvos frequentes: a queda do general Santos Cruz da Secretaria de Governo é apontada em Brasília como consequência de uma ofensiva difamatória liderada pelo gabinete do ódio.
Allan é suspeito de ter envolvimento com a criação do perfil “Pavão Misterioso” em redes sociais, conta que foi dedicada a espalhar acusações falsas e montagens para criar constrangimentos a adversários do governo. Na CPI das Fake News, Allan foi confrontado pelo deputado federal David Miranda (PSOL-RJ) sobre o tema. Segundo o parlamentar, conforme registro das notas taquigráficas do Senado, a conta do avatar Pavão Misterioso no Instagram tem o e-mail do Terça Livre como administrador.
O marido de Miranda, o jornalista Glenn Greenwald, foi um dos alvos do Pavão Misterioso. Na época dos ataques, Greenwald liderava a equipe do The Intercept durante a série de reportagens que ficou conhecida como Vaza-Jato, período em que Sergio Moro ainda era aliado do governo Bolsonaro. Parte das publicações do Pavão Misterioso foi alavancada pelo Terça Livre, que fazia postagens acerca das falsas acusações do perfil. Allan nega qualquer participação no caso.
Antes de ter suas contas bloqueadas, o que lhe impede de fazer publicações nas redes sociais, ele foi alvo de buscas e apreensões da Polícia Federal, em cumprimento de ordens do STF, nos inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos. Ele é suspeito de ser um dos mentores das redes de ataques, intimidações e até ameaças contra ministros e instituições, o que poderá enquadrá-lo na Lei de Segurança Nacional.
Entre outros episódios marcantes, ele publicou um vídeo inverossímil de que as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) haviam manifestado apoio ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e ameaçado Bolsonaro. “Ainda não foi comprovado se o vídeo é falso, mas eu tirei (do ar) por precaução, por prudência”, se defendeu o blogueiro na CPI das Fake News.
Não foi a única publicação apagada por Allan recentemente. Coletando dados disponibilizados pelo YouTube, o estúdio de análise de dados Novelo Data, de São Paulo, verificou que o Terça Livre TV deletou 272 vídeos somente em junho de 2020, após o avanço das investigações conta ele.
Contrapontos
O que diz Allan dos Santos
Não respondeu aos e-mails enviados pela reportagem para o Terça Livre. A reportagem também tentou contatos por telefone, mas não houve resposta.
O que diz João Bernardo Barbosa
"Há uns três anos, passei a acompanhar o Terça Livre no YouTube. Enxergando as limitações gerenciais do canal, doei meu tempo para ajudar o Terça Livre como voluntário e à distância, pois não resido no Brasil. Nunca fiz doações ao Terça Livre ou ao Allan dos Santos. Em 2018, indiquei um escritório de contabilidade para promover o registro da empresa CANAL TL PRODUCAO DE VIDEOS E CURSOS LTDA. Por equívoco do escritório, meu e-mail foi utilizado como contato de responsável pelo canal. Isso já foi corrigido e toda essa situação já foi esclarecida pelo Sr. Allan em seu depoimento na CPMI."