Quando Sergio Moro deixou o cargo de ministro da Justiça e Segurança Pública do governo de Jair Bolsonaro, no dia 24 de abril, saiu atirando. Acusou o presidente de pedir relatórios de inteligência da Polícia Federal (PF), inclusive sobre investigações que envolvem sua própria família.
— O presidente me disse mais de uma vez, expressamente, que queria ter uma pessoa do contato pessoal dele, que ele pudesse ligar, que ele pudesse colher informações, que ele pudesse colher relatórios de inteligência, seja o diretor, seja superintendente. Que tinha preocupação com inquéritos em curso no STF (Supremo Tribunal Federal) e que a troca também seria oportuna na PF por esse motivo. E, realmente, não é o papel da Polícia Federal prestar esse tipo de informação — relatou Moro quando anunciou sua demissão, o que foi repetido ao ser interrogado a pedido do STF no último sábado (2).
Mas alguns juristas ouvidos por GaúchaZH consideram que Moro, de algoz, virou alvo. Salientam que aquilo que o ex-ministro condena em Bolsonaro ele próprio fez, em certa medida, quando era juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba. Como idealizador da Operação Lava-Jato, que condenou 165 pessoas só no sul do Brasil, o magistrado recebeu informalmente peças do processo que ainda não estavam prontas, orientou sobre como procuradores da República deveriam agir e até advertiu quanto à qualidade de certas denúncias — como se fosse papel do magistrado falar antes desses documentos estarem prontos.
As ingerências de Moro em assuntos de outros poderes ficam claras em diálogos que ele manteve com procuradores da República por meio do aplicativo telefônico Telegram. As conversas foram interceptadas ilegalmente por hackers e divulgadas pelo site The Intercept Brasil. Em alguns casos, observam críticos do ex-juiz, ele deu conselhos que mais se assemelhavam a ordens.
Um dos episódios mais explícitos de interferência de Moro nas iniciativas do Ministério Público Federal (MPF) aconteceu em 5 de julho de 2017. O então juiz questionou o procurador da República Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Lava-Jato, sobre a possibilidade de o ex-deputado Eduardo Cunha (MDB-RJ), preso por lavagem de dinheiro, fechar um acordo de delação, o que foi negado pelo procurador. O magistrado foi taxativo:
Moro - Rumores de delação de Cunha... Espero que não procedam.
Dallagnol - Só rumores. Não procedem....Tem reunião com advogado. Sempre que quiser, vou te colocando a par.
Moro - Agradeço por me manter informado. Sou contra, como sabe.
Em 13 de março de 2017, Moro já tinha advertido o procurador Dallagnol de que uma procuradora da República não tinha boa performance nas audiências e dá a entender que isso pode prejudicar a acusação no processo:
Moro - Prezado, a colega de vocês é excelente profissional, mas para inquirição em audiência, ela não vai muito bem. Desculpe dizer isso, mas com discrição, tente dar uns conselhos a ela, para o próprio bem dela. Um treinamento faria bem. Favor manter reservada essa mensagem.
Dallagnol - Ok. Manterei sim, obrigado!
Em outro caso, em 28 de abril de 2016, Moro orientou o MPF sobre como tornar mais robusta a acusação. Dallagnol informa à procuradora Laura Tessler que Moro alertou para o fato de faltar um dado na denúncia contra Zwi Skornicki, representante de estaleiro que pagou propinas a funcionários da Petrobras.
Dallagnol - Laura, no caso do Zwi, Moro disse que tem um depósito em favor do (Eduardo) Musa e se for por lapso que não foi incluído, ele disse que vai receber amanhã e dá tempo. Só é bom avisar.
O procurador se referia a um depósito bancário feito para Eduardo Musa, ex-gerente da área internacional da estatal. O "lapso" foi corrigido porque Moro avisou. Musa e Zwi foram condenados.
Sergio Moro também cobrou, em 3 de fevereiro de 2016, uma manifestação por parte do MPF sobre um habeas corpus impetrado pela Odebrecht. O procurador pediu mais tempo para finalizar, mas enviou a peça "quase pronta para adiantar".
Moro - Quando será a manifestação do MPF?
Dallagnol - Estou redigindo, mas quero fazer bem feita, para já subsidiar os habeas corpus que virão. Posso mandar, se preferir, versão atual por aqui, para facilitar preparo da decisão.
Moro - O prazo é hoje, três dias. Não deixe passar, pois é importante.
Moro recebeu pelo próprio aplicativo Telegram a peça do MPF, ainda não finalizada. Operadores do Direito ouvidos por GaúchaZH consideram a situação irregular. A comunicação entre juiz e procurador deveria ter sido feita de forma transparente, pelos autos dos processos, em vez do uso do aplicativo.
Em 7 de julho de 2015, um procurador da República comenta que "o Russo (apelido de Moro entre os membros da força-tarefa da Lava-Jato) sugeriu a operação do professor para a semana que vem". Outro responde: "beleza, vou começar a me organizar".
A reportagem buscou a opinião de quatro juristas que atuaram na Lava-Jato. Desses, três condenam o uso que Moro fez do aplicativo para influenciar e orientar procuradores. Um dos defensores da empreiteira Odebrecht na Lava-Jato, Alexandre Wunderlich acredita que há mesmo semelhança entre o que Moro fez como juiz e a pressão que sofreu do presidente, quando ministro.
— Pelo teor das mensagens publicadas pelo Intercept, o juiz Moro tentou imiscuir-se nas atividades alheias, tomou parte no que não lhe dizia respeito junto ao Ministério Público e polícia. Agora, vê-se atingido. É o caso do dito popular, "pau que bate em Chico, bate em Francisco" — opina Wunderlich.
Advogado gaúcho que atuou na defesa de seis clientes réus da Lava-Jato, Lúcio de Constantino acha que não é possível assegurar que Moro tenha orientado os inquéritos e não vê comparação possível na relação com o presidente Bolsonaro.
— É preciso lembrar que, no Brasil, é muito comum a relação avizinhada entre juízes, promotores e advogados, bem como a existência de empatia entre juízes e a causa. Por isso, pode-se dizer que nossos juízes são imparciais, mas não são neutros. E a eventual troca de informações entre magistrados com promotores ou advogados não tornam os juízes parciais.
Um terceiro advogado, que prefere anonimato, acredita que Moro sofreu agora algo que também fez: interferência nos processos. Mas, pelo fato de a família Bolsonaro ser investigada pela PF, a ingerência do presidente soa mais grave.
Já o advogado do ex-ministro petista José Dirceu, Roberto Podval, um severo crítico de Moro, declarou, a respeito da demissão do ministro:
— Agora o ex-juiz já não pode "escrever o roteiro" do que vai acontecer, por mais que imagine aonde esse enredo pode terminar.
GaúchaZH não conseguiu conversar com Moro e Dallagnol. Eles sempre disseram que os diálogos vazados por hackers podem ter sido adulterados ou retirados de contexto.