Cinco horas de gravações de uma sessão secreta do Superior Tribunal Militar (STM) teriam ficado esquecidas para sempre no arquivo do edifício da Corte, em Brasília, não fosse o réu, um capitão de artilharia do Exército, ter se tornado, três décadas depois, presidente da República. O protagonismo de Jair Messias Bolsonaro levou o jornalista Luis Maklouf Carvalho, um dos mais experimentados repórteres de política do país, hoje no Estado de S. Paulo, a remontar o quebra-cabeças histórico que culminou na sessão final daquele 16 de junho de 1988 em que o então oficial da ativa sentou no banco dos réus da máxima corte militar do país.
Como repórter do Estadão, Maklouf (leia entrevista aqui) solicitou ao STM a íntegra do processo contra Bolsonaro, acusado de mentir sobre um suposto plano de explodir bombas em locais estratégicos do Rio. Além de três volumes que contabilizam 770 páginas de documentos, em boa parte com carimbo “reservado”, os arquivistas do tribunal enviaram 37 gravações em áudio da audiência, um diamante bruto na mão de um jornalista talentoso que soube lapidar a documentação.
Em 253 páginas recheadas de fotocópias do processo, imagens de arquivo pessoal do oficial e reproduções de artigos da imprensa na época, o livro "O Cadete e o Capitão – A Vida de Jair Bolsonaro no Quartel" (editora Todavia) lança luzes sobre os 15 anos de Bolsonaro na caserna. Estão lá episódios que o presidente e seus filhos apreciam badalar, como a vez em que o Cavalão, apelido do então cadete 531, salvou um colega, Negão Celso, de morrer afogado em treinamento no 21º Grupo de Artilharia de Campanha em São Cristóvão, no Rio. Também é possível conhecer seu desempenho como estudante que, se não era brilhante, também não o desabonava: “Nos exames finais do primeiro ano da Aman (Academia Militar das Agulhas Negras), a nota mais alta foi geometria, 9,3. Tirou 8,7 em matemática… 7,7 em filosofia; 7,3 em física 1…”.
Mas é a partir de dois momentos polêmicos que a obra se revela um corajoso livro-reportagem. O ato político número 1 de Bolsonaro se deu em 3 de setembro de 1986, quando o capitão assinou um artigo na seção Ponto de Vista da revista Veja no qual reclamava do baixo soldo nos quartéis: “Torno público este depoimento para que o povo brasileiro saiba a verdade sobre o que está ocorrendo na massa de profissionais preparados para defendê-los”, afirmava o texto intitulado “O salário está baixo”. Embora ecoasse boa parte do sentimento na caserna, era uma insubordinação. Mais: uma afronta ao comando do ministro do Exército, general Leônidas Pires Gonçalves, gaúcho de Cruz Alta, e à política salarial do primeiro presidente pós-ditadura, José Sarney. O ato rendeu a Bolsonaro 15 dias de prisão por quebra de disciplina e hierarquia.
O segundo episódio foi mais grave. Em 28 de outubro de 1987, a revista Veja contava que a repórter Cassia Maria Vieira Rodrigues recebera de Bolsonaro e outro militar a informação de que planejavam explodir bombas em quartéis em protesto contra os baixos soldos. O plano chamava-se Beco sem Saída. Dizia a reportagem: “Caso o reajuste ficasse abaixo de 60%, algumas bombas seriam detonadas nos banheiros da Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (Esao), sempre com a preocupação de evitar que houvesse feridos. Simultaneamente, haveria explosões na Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende, e em outras unidades do Exército”.
Tão logo a revista chegou às bancas, Bolsonaro negou as acusações. O ministro Leônidas saiu em sua defesa. Na semana seguinte, a revista aumentou a carga, publicando desenhos atribuídos a Bolsonaro que detalhavam o suposto plano.
A denúncia foi baseada em um suposto encontro entre a repórter com os então capitães Bolsonaro e “Xerife” – depois identificado como Fábio Passos –, e sua mulher, Lígia D’Arc Passos, na Vila Militar de Deodoro. A conversa era reservada, mas a revista entendeu que, por se tratar de um plano terrorista, não poderia deixar de torná-lo público, identificando os interlocutores. Assim, quebrou o off.
Um conselho de justificação do Exército considerou Bolsonaro culpado por 3 votos a 0, por ter tido “conduta irregular e praticado atos que afetam a honra pessoal e o pundonor (ponto de honra) militar e o decoro da classe”. O ministro Leônidas levou o caso ao STM, onde Bolsonaro encarregou-se da própria defesa.
O principal argumento do capitão foi o resultado dos exames grafotécnicos sobre a autoria dos desenhos publicados por Veja. Um primeiro laudo feito pela Polícia do Exército (PE) concluiu que não havia como comprovar que as letras e croquis eram ou não de autoria de Bolsonaro. O segundo laudo militar também foi inconclusivo. Um terceiro exame, feito desta vez pela Polícia Federal (PF), concluiu que os croquis eram de autoria de Bolsonaro. Depois, a PE apresentou um quarto laudo, retificando o segundo documento, que, dessa vez, passou a confirmar o capitão como autor dos desenhos. Com dois exames acusatórios e dois não conclusivos, a máxima corte militar absolveu Bolsonaro por 9 votos a 4 baseada no princípio do Direito chamado in dubio pro reo (em casos de dúvidas, se favorecerá o réu.).
Com apuração minuciosa, Maklouf questiona a decisão dos ministros.
Ele mostra que o quarto laudo não existiu. O documento era uma espécie de adendo à segunda perícia, de número 58/87, que retificava o segundo laudo, a partir de novas amostras coletadas do réu. Assim, o que de fato existia era: um laudo inconclusivo, um segundo inicialmente inconclusivo, mas posteriormente corrigido apontando Bolsonaro como autor, e um terceiro da PF, que o acusava.
Pelos áudios da última sessão, é possível depreender que, ao invés de questionar o réu, os ministros passaram grande parte da audiência desqualificando a imprensa, em especial a revista Veja e sua repórter. Em ataque genérico a todos os jornalistas, o general Alzir Bejamin Chaloub afirma: “Repórter não é flor que se cheire”.
O alto escalão da Justiça militar elege a imprensa como inimiga e passa a livrar Bolsonaro de culpa. Sentindo-se protegidos pelo sigilo da sessão, os magistrados lançam petardos contra o próprio ministro Leônidas e arriscam-se em traçar o perfil psicológico do réu. Gaúcho de Alegrete, Aldo da Silva Fagundes faz perguntas retóricas a respeito de Bolsonaro:
– Seria um insano? Há certas infantilidade, certas atitudes que surpreendem, mas é muito difícil concluir pela insanidade mental deste homem. Um touro forte, um gringo de 1m80cm de altura, 90 quilos, atleta, desportista, afora essas pequenas infantilidades, teve algumas atitudes em que revelou até muita presença de espírito – disse, ao relembrar o salvamento do colega de farda.
– Seria um homem radical, interessado em subverter a ordem pública, um terrorista, enfim?
Não: ele votou pela absolvição. Bolsonaro passou para a reserva do Exército após ser eleito vereador no Rio com 11.062 votos pelo extinto Partido Democrata Cristão (PDC), seis meses após ser absolvido. Até hoje, sustenta que a versão da Veja sobre os supostos ataques não são verdadeiras. A revista, por sua vez, nunca recuou das informações publicadas.
Maklouf tentou, sem sucesso, ouvir a versão do hoje presidente. A repórter Cassia Maria também não aceitou dar entrevistas. Mas seu livro, objetivo e com acusações e questionamentos lastreados por documentos oficiais, esquadrinha um período pouco explorado da nascente redemocratização brasileira. Recupera a discordância entre a tropa e a cúpula militar e as fricções entre as Forças Armadas e a imprensa que testava seus limites em um cenário político novo.