A postura controversa dos magistrados envolvidos no pedido de habeas corpus ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) expôs a crescente politização do Judiciário e gerou pelo menos sete denúncias ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Alvos das representações, o juiz Sergio Moro e o desembargador Rogério Favreto terão de explicar as decisões tomadas no domingo, quando usaram despachos judiciais na troca de farpas que permeou a manutenção da prisão do petista. Até o final da noite desta segunda-feira (9), Favreto era alvo de oito denúncias, uma delas assinada por mais de cem integrantes do Ministério Público e do Judiciário. Já Moro teve contra si duas queixas, uma delas de um cidadão do interior do Paraná.
A inquisição não deve se esgotar tão cedo e promete ser mais ampla. A Associação Juízes para a Democracia, o PT, movimentos sociais e parlamentares prometeram ingressar com novas queixas ao CNJ, direcionadas também ao relator da Lava-Jato no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), João Pedro Gebran Neto, e ao presidente da Corte, Carlos Eduardo Thompson Flores. O trio de desembargadores se encontrou nesta segunda-feira (9) no plenário do TRF4. Num ambiente de total desconforto, nem sequer trocaram olhares.
Pouco antes, Gebran havia emitido novo despacho no hábeas de Lula, ratificando sua decisão anterior que manteve o ex-presidente encarcerado em Curitiba. No documento, classificou a liberdade concedida por Favreto como "afronta" à 8ª Turma do TRF4, ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ao Supremo Tribunal Federal (STF), colegiados que já haviam deliberado anteriormente sobre o mesmo tema.
A confusão estabelecida no domingo, quando Favreto emitiu três decisões favoráveis a Lula e viu, uma a uma, todas serem cassadas sucessivamente por Moro, Gebran e Thompson Flores, deixou estupefatos membros de tribunais superiores. As críticas veladas se estendem a todos os magistrados envolvidos no episódio. Também despertou suspeitas o fato de deputados petistas ingressarem com o pedido de soltura justamente no único plantão do ano de Favreto, um desembargador que por 20 anos foi filiado ao PT.
— Foi uma coisa espetaculosa. A situação foi nitidamente arquitetada e não teve a melhor resposta do Judiciário. Todo mundo pareceu agir politicamente — comenta um ex-ministro do STJ.
Para a procuradora da República Silvana Batini, o quiproquó institucional protagonizado por quem tem o dever de garantir segurança jurídica à sociedade é reflexo de um cenário já há bastante tempo desenhado no Judiciário. Doutora em Direito Público e mestre em Direito Constitucional, a professora da Fundação Getulio Vargas (FGV) enxerga ascensão do viés político nas ações judiciais, muitas vezes motivada pelo voluntarismo demonstrado por magistrados ao tomarem decisões monocráticas:
— Estamos diante de uma deterioração paulatina do sistema. São pessoas que se sentem legitimadas a impor sua visão individual de mundo e do próprio Direito, em desrespeito a decisões colegiadas. No domingo, isso gerou uma sucessão de decisões insólitas e inéditas.
Para muitos especialistas, esse conteúdo político decorre da forma como são indicados os componentes dos tribunais. Entre os 11 ministros do STF, nomeados pelo presidente da República, apenas quatro são juízes de carreira. No STJ, 11 dos 33 são indicados pelo mecanismo do Quinto Constitucional, que reserva vagas a advogados e membros do Ministério Público (MP). No TRF4, seis dos 27 desembargadores têm origem na advocacia e no MP, entre eles Favreto, que entrou na condição de advogado em 2011, nomeado por Dilma Rousseff.
Pesquisador do Centro de Justiça e Sociedade e coordenador do projeto Supremo em Números, que analisa as decisões do STF, o professor da FGV Ivar Hartmann entende que as evidências de uma politização cada vez maior do Judiciário exigem aperfeiçoamento dos mecanismos de controle dos magistrados. Para Hartmann, os juízes precisam "pecar pelo excesso de cautela" ao analisarem a própria suspeição diante dos processos que irão julgar. A recente decisão do ministro do STF Dias Toffoli, que concedeu habeas corpus de ofício a José Dirceu, seu ex-chefe no governo Lula, sem que a própria defesa do petista tivesse ingressado com o pedido, gerou especulações de compadrio. Hartmann, porém, não vê na Suprema Corte a origem das distorções e torce para que o imbróglio em torno da liberdade de Lula ajude a desenhar novos rumos para o Judiciário.
— Diante dessa estranha associação de eventos, é fácil apontar o dedo para o STF. Houve erro de Moro, Favreto e Gebran. Espero que os órgãos olhem para o que ocorreu e busquem tirar uma lição.
*Colaborou Eduardo Matos