Inventado para resolver problemas, o Estado se tornou especialista em criá-los.
Ineficiente, pesado e corrupto: com raríssimas exceções, é o que pensa grande parte
da população do planeta, até mesmo em países que tomamos aqui como exemplo.
No Brasil, a crise que se traduz no atraso no pagamento de servidores, no excesso de burocracia e na baixa qualidade do serviço prestado reflete, sobretudo, a incapacidade do setor público de lidar com os desafios atuais. Estruturas do século passado, operando de forma analógica, são mantidas enquanto as demandas por mais transparência e agilidade nunca foram tão imediatas. O descompasso entre as exigências da sociedade e a capacidade de resposta da política e dos governos põe em xeque a democracia na forma como a concebemos.
Depois de debater o Futuro do Trabalho, Zero Hora inicia nesta segunda-feira a segunda etapa do projeto Ideias para o Futuro. Por meio de uma série de artigos, vamos conversar sobre boas práticas de governos, estatais e órgãos públicos. Uma revisão da forma de atuação do Estado é urgente.
Com acesso a milhões de dados e com ferramentas capazes de cruzar milhões de informações, governos têm a chance de inovar em políticas públicas, alocar melhor os recursos e reduzir as despesas. Já tem quem faça isso.
A Estônia, no Leste Europeu, apostou alto na tecnologia para reduzir a burocracia. Lá, praticamente todos os serviços públicos estão online.
O país, com 1,3 milhão de habitantes – população quase igual à de Porto Alegre –, permite que as pessoas abram uma empresa, licenciem um carro ou se matriculem em universidades pela internet. Um cartão agrega todos os tipos de documentos necessários. Informações presentes na carteira de identidade, na de motorista, no título de eleitor, no CPF, no passaporte, no histórico médico e no escolar estão conectadas em uma única plataforma digital. Os cidadãos não precisam peregrinar por vários órgãos públicos toda vez que necessitam do Estado. Tudo é feito na hora, de forma gratuita.
A plataforma X-Road, a espinha dorsal do programa digital, conecta bancos de dados de 950 instituições públicas e empresas do país, permitindo o cruzamento de informações e tornando o atendimento muito mais ágil. Apenas 5% das solicitações são feitas por humanos.
– O sistema de saúde aqui funciona com um modelo de médicos de família. Você acessa o serviço, é solicitado que você preencha um formulário com algumas informações e, a partir daí, já pode fazer o agendamento de consulta. Tudo digital. Não precisei ir a nenhum lugar, ligar para ninguém– explica a gaúcha Roberta Corrêa da Luz, de 29 anos, que há 10 meses mora em Talim, capital da Estônia.
No consultório, não é preciso apresentar documentos extras. As informações já estão no sistema. Os resultados de exames vão para o perfil online do paciente. A prescrição de qualquer medicamento também é online. Quando chega à farmácia, o cidadão só entrega o cartão digital e o atendente acessa no sistema a autorização médica para vender o remédio e todas as informações de dosagem necessárias.
– Não precisei levar uma folha impressa sequer. O meu cartão digital continha todos esses dados –completa Roberta.
Ir às urnas? Prática obsoleta. Nas eleições estonianas, não é preciso comparecer a nenhuma seção eleitoral. O voto é dado por um aplicativo de celular.
A Estônia criou ainda um programa de residentes digitais, o e-cidadão. O documento não garante um passaporte do país a estrangeiros, mas dá uma identidade virtual a qualquer pessoa do mundo e permite acesso a todos os serviços públicos estonianos.
– Inovação costuma ser um termo ligado ao setor privado. Mas a competição entre países é tão feroz quanto entre empresas no mercado. Tudo é disputado: investimentos, talentos, oportunidades. Os gestores públicos também precisam lidar com limites de orçamento e diminuir a aversão ao risco. Sem tentativa e erro, não existe processo inovador – afirma Pedro Cavalcante, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e um dos organizadores do livro Inovação no Setor Público: teoria, tendências e casos no Brasil.
NO BRASIL E NO RS, BUROCRACIA ENGESSA
Por aqui, o emaranhado de regras e procedimentos exigidos pela legislação no país atrapalha tanto a rotina das empresas quanto a do cidadão comum. Solicitar serviços de água, luz ou internet torna-se tarefa complicada e demorada. Muitas vezes, cara.
O excesso de burocracia tem colocado o Brasil nas piores posições nos rankings mundiais de competitividade. Mas também há boas iniciativas. O Supremo Tribunal Federal, em parceria com a Universidade de Brasília (UnB), já dá os primeiros passos na implantação de um complexo sistema de inteligência artificial. Batizada de Victor, a ferramenta vai aumentar a velocidade de tramitação dos processos por meio do cruzamento de informações.
A máquina vai “ler” todas as decisões já proferidas pela Corte para identificar quais dos recursos extraordinários que sobem para a última instância são mais relevantes e podem ser vinculados a temas de repercussão geral. Atualmente, só o acervo do STF conta com mais de 46 mil processos.
Victor não vai julgar nenhum caso, a decisão ainda caberá aos juízes. Mas a expectativa é de que o prazo de tramitação seja reduzido drasticamente. Os primeiros resultados devem ser apresentados em agosto deste ano.
No RS, a Justiça também vem investindo no uso de inteligência artificial para dar agilidade aos processos. A tramitação totalmente virtual, que garante menos tempo despendido na realização de atividades administrativas e mais coerência nas decisões, já é realidade. Tribunais de outros Estados adotam o sistema criado no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, com sede em Porto Alegre, como modelo.
– No Brasil, 100 milhões de processos desafiam órgãos e carreiras que integram o sistema de Justiça. Essa quantidade de informações nunca permitiu uma visão exata sobre os detalhes dos processos, a tendência das decisões ou uma estratégia individualizada para buscar a mediação e a conciliação. A diminuição de custo de armazenamento e processamento de big data facilita a extração de informações de milhares de documentos para organizar estudos inimagináveis há pouco tempo atrás – diz Alexandre Zavaglia Coelho, advogado especializado em Direito e tecnologia e coordenador do primeiro curso de Ciência de Dados Aplicada ao Direito do país.