Alvo de operação do Ministério Público (MP), Vera Cruz tornou-se o oitavo município gaúcho investigado por fraude contra a saúde pública nos últimos cinco anos. São casos que envolvem passar apadrinhados à frente na fila do Sistema Único de Saúde (SUS), desvio de dinheiro de hospitais, superfaturamento de procedimentos médicos, entre outras irregularidades que prejudicam – e até matam – milhares de pessoas. Além desses locais, pelo menos outras 20 prefeituras estão na mira do órgão.
Tão grave é esse tipo de violação que o MP criou o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado na Saúde (Gaeco-Saúde) para investigá-la. Desde então, o órgão já deflagrou duas operações: em Vera Cruz e Soledade (leia mais abaixo). Conforme o coordenador do núcleo, promotor João Afonso Beltrame, as apurações são demoradas e complexas:
– A cada 10 casos denunciados, dois ou três têm indícios e podem gerar um inquérito.
Conforme o promotor, a estratégia conhecida como fura-fila é uma das mais comuns:
– Arriscaria dizer que ocorre em todas as cidades. Nem sempre são esquemas organizados, mas prejudicam centenas de pessoas, que é o mais grave.
É desta modalidade a fraude investigada em Vera Cruz, município de 26 mil habitantes do Vale do Rio Pardo. Em troca de poder e de votos, nomes ligados ao PTB supostamente passavam conhecidos na frente de outras pessoas ao atribuir urgência maior aos seus casos.
Os investigados são o vice-prefeito Alcindo Francisco Iser, os secretários da Saúde, Eliana Maria Giehl, e do Desenvolvimento Rural e Meio Ambiente, Martin Fernando Nyland (também vereador) e os vereadores Eduardo Wanilson Martins Viana e Marcelo Rodrigues Carvalho. Além deles, também são alvo do MP outras cinco pessoas.
Com isso, cidadãos como Adão Luiz da Silva dos Santos, 53 anos, possivelmente ficam à espera de atendimento gratuito muito mais tempo do que deveriam. Com a perna direita erguida sobre uma cadeira de praia no pátio de casa, numa tarde acima de 30ºC, o safrista da indústria do tabaco tenta aliviar a dor que lhe aflige há quatro anos. As varizes, que não param de crescer, aumentaram o tamanho da panturrilha. Adão não toma qualquer medicamento, pois nunca chegou a sua vez de consultar com um médico vascular do SUS.
Há mais de mil dias na fila do sistema público, o safrista teme que a dilatação das veias possa evoluir para uma trombose e, sem realizar o procedimento para retirar as varizes, haja risco de ter de amputar a perna.
A mulher de Adão sofre de depressão. Para o sustento da família, o casal conta com a ajuda da filha, que ganha R$ 600 com bicos na vizinhança, em Linha Tapera. Por conta do aperto, não cogita desembolsar os cerca de R$ 7 mil pela operação.
– A gente não tem condições nem de pagar os R$ 380 do médico particular. Trabalhamos de dia para poder comer à noite – lamenta o safrista.
Além da espera pelo médico vascular, em agosto deste ano Adão fez duas novas requisições: oftalmologista e otorrinolaringologista. Com audição estimada em 10% no ouvido direito, corre risco de não obter emprego em fumageira se não conseguir um laudo que comprove sua capacidade auditiva. A esperança e a confiança no sistema público vão se esvaindo.
– Tenho medo de morrer e não conseguir sequer a consulta da perna – desabafa.
Os detalhes da investigação em Vera Cruz ainda estão sob sigilo. Os servidores estão afastados de suas funções por 120 dias por determinação da Justiça, mas tiveram os salários mantidos – o que aumentou a indignação de moradores, que fizeram dois protestos.
Contrapontos
O que diz a prefeitura de Vera Cruz
“Imediatamente, os secretários envolvidos foram exonerados dos cargos e foi aberta sindicância para a servidora de carreira citada. No dia seguinte, o prefeito assumiu a Secretaria de Saúde e determinou a implantação de aplicativo para monitorar pelo CPF o andamento dos processos. (...) A recondução do vice-prefeito, pelo fato de ser eleito, depende da Justiça. O governo ainda não foi comunicado pelo MP quem são os usuários prejudicados. Mediante ciência, serão atendidos em respeito aos critérios estabelecidos”, informou a assessoria de imprensa da prefeitura.
O que dizem Alcindo Francisco Iser, Eliana Maria Giehl, Martin Fernando Nyland, Eduardo Wanilson Martins Viana e Marcelo Rodrigues Carvalho
“Ninguém cometeu crime. O MP não chegou a nenhuma conclusão ainda, e já pediu afastamento. É uma medida muito drástica, sem prova. Vamos pedir reintegração (dos cargos)”, informou a defesa.
O que diz o Ministério da Saúde
O órgão federal informou que “a regulação é prerrogativa e responsabilidade dos gestores locais, e que o uso do Sisreg (sistema utilizado e fraudado em Vera Cruz, no Vale do Rio Pardo) é opcional de cada gestor. O Ministério da Saúde também acrescentou que ainda não recebeu notificação da operação”.
GEOGRAFIA DAS IRREGULARIDADES
05/12/2017 - Vera Cruz
Pessoas ligadas ao PTB foram afastadas dos cargos por suspeita de envolvimento em fraude no SUS.
12/04/2017 - Soledade Entre 2012 e 2017, um laboratório teria forjado a realização de 17.666 exames e recebido cerca de R$ 3 milhões por serviços nunca prestados.
21/10/2016 - Ivoti e Taquara Eram inseridas informações falsas no sistema do SUS, em Taquara, de pacientes residentes em Ivoti, com o objetivo de agilizar o atendimento visando a obtenção votos.
10/10/2016 - São Lourenço do Sul
Equipe da RBS TV revelou esquemas montados por políticos para furar a fila do SUS.
04/01/2015 - Porto Alegre e Canoas Descoberta a “Máfia das Próteses”, um grupo que forçava o IPE a custear cirurgias superfaturadas, mediante autorização judicial.
01/10/2012 - Porto Alegre
Reportagem da RBS TV revelou cobranças irregulares e até lançamento de consultas fantasmas por meio do IPE.
08/08/2012 - Gramado dos Loureiros
Investigação do Tribunal de Contas do Estado descobriu esquema de emissão de notas superfaturadas de consultas.