À frente do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado na Saúde (Gaeco-Saúde), criado em 2016 pelo Ministério Público, o promotor João Afonso Beltrame coordenou ao menos duas grandes investigações envolvendo o SUS e o IPE.
Ele explica que as irregularidades costumam ser bem arquitetadas e demoram a ser comprovadas. A seguir, veja os principais trechos da entrevista.
Quais são os tipos de fraudes mais comuns contra a saúde atualmente?
São dois: o fura-fila, que, se hoje for investigar, vai encontrar em qualquer município, e a fraude contratual, que envolve empresas de terceiro setor, como ONGs e Oscips, que prestam serviços a entes públicos e recebem grandes quantias de valores. Essas empresas não deveriam ter lucro, mas percebemos nas investigações que as pessoas que trabalham nessas ONGs acabam vivendo disso. A movimentação financeira delas passa da casa dos milhões, prejudicando muito o erário. Estamos investindo forte nesse combate. O prejuízo à população é indireto, e muitas vezes demoramos a perceber a fraude. Quando chega para a gente? Quando o serviço é mal prestado e as pessoas reclamam, aí começa a apuração. Já o conhecido fura-fila acaba impactando mais diretamente as pessoas e elas denunciam mais. Descobrem que há privilégios, pois ouvem falar. Então, a gente acaba investigando e desvenda as fraudes.
O modus operandi dos fura-filas são parecidos?
Sim, muito parecidos. Por exemplo: o caso de Ivoti era igual ao de Vera Cruz. Pessoas que operam o sistema do SUS adulteravam dados em benefício de conhecidos, em troca de poder. Em Ivoti, havia a peculiaridade: município cadastrava os moradores no sistema da outra cidade (Taquara), como se lá morassem, para agilizar o atendimento. Isso dificultou a investigação. Mas, a partir de denúncias, o promotor Flavio Duarte obteve acesso aos dados da Secretaria de Saúde do Estado e conseguiu comprovar o grande volume de pacientes invertidos. Ele pôde perceber que havia uma constância no esquema. O que ocorre é que, eventualmente, há pequenos ajustes na saúde. Quando estão desesperadas, as pessoas fazem qualquer coisa por um atendimento. Mas, quando a manobra é frequente, sistemática, notamos que é fraude e que tem um objetivo além de salvar vida, que é o poder, o voto, o prestígio.
Se é fraude antiga e funciona de forma similar, por que continua se repetindo? Qual é a dificuldade de combater?
Os sistemas são operados por pessoas, alguém tem de alimentá-los. Essas pessoas botam os dados que quiserem, inclusive, errados. Então, é sempre passível de fraude. Desde que os sistemas passaram a ser informatizados, diminuiu bastante. E quando há regulação pela central do Estado, também é mais difícil, mas, ainda assim, funciona (a fraude). Porque se alguém lá na prefeitura classificar um paciente com categoria 1 (a de prioridade mais alta) e o médico regulador der 5, pela média, o paciente fica com 3 e, com isso, consegue passar à frente de bastante gente. Uma das facilidades em termos de investigação é que o sistema é logado. Então, quando começamos a investigar, dá para ver quem inseriu os dados fraudados no sistema.
É possível mensurar quantos municípios têm fraudes e quantas pessoas são prejudicadas?
Não. Em primeiro lugar, as investigações são sigilosas. No Gaeco, estou investigando mais de 20 prefeituras. Mas pode ter outros 10 promotores checando informações de fraudes no Interior e não fico sabendo. Já o número de pessoas prejudicadas é ainda mais difícil de saber, porque os dados precisam ser analisados e nem sempre a gente tem acesso a todos os documentos, as fraudes nem sempre são perceptíveis. Além disso, não tenho acesso a todos os sistemas.