O prazo de pagamento se aproxima do fim, mas a fila de pessoas com direito a receber precatórios (dívidas judiciais acima de 10 mínimos) continua crescendo. No início do ano, o débito estadual bateu a marca histórica de R$ 12,2 bilhões – o triplo do valor orçado para a saúde em 2017 e quatro vezes o déficit previsto para este ano. Já são mais de 57,1 mil precatórios na fila, que precisa ser zerada até 2020, por determinação do Supremo Tribunal Federal (STF).
Um dos títulos à espera de quitação é o da aposentada Ilda Rosa da Silva, 70 anos, cuja história é acompanha por ZH desde 2015. A terra deixada de herança pelo pai dela, Natalino Gonçalves da Rosa, foi desapropriada pelo Estado no fim da década de 1970, para a criação do Parque Estadual de Itapuã, em Viamão. A contragosto, Ilda e seus irmãos viraram precatoristas. Em 2008, a moradora de Porto Alegre conseguiu receber parte do dinheiro, mas segue esperando o restante da indenização. Com o que ficou faltando, planeja ajudar a filha a construir uma casa.
– Já chorei e me desesperei. Na época, não tivemos escolha. Minha falecida mãe foi tirada à força de casa. Acabamos assinando os papéis, mas está cada vez mais difícil de acreditar que o Estado vai pagar o que deve – diz a aposentada.
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Desde 2009, o Executivo é obrigado a repassar no mínimo 1,5% da receita corrente líquida para que o Judiciário faça o pagamento dos títulos, o que vem ocorrendo de forma rigorosa, segundo a juíza Kétlin Carla Pasa Casagrande, da Central de Conciliação e Pagamento de Precatórios do Tribunal de Justiça do Estado. O problema é que o volume de recursos é ínfimo diante do tamanho do passivo. Em média, representa R$ 40 milhões por mês.
Metade da cifra vai para conciliações e os outros 50% servem para pagar títulos em ordem cronológica – idosos, doentes e pessoas com deficiência têm direito a receber parte do crédito com antecedência. A verba é tão curta que até esses valores têm sido quitados com atraso.
Vice-presidente da Comissão de Precatórios da Ordem dos Advogados do Brasil no Estado (OAB), Ricardo Bertelli reivindica a ampliação dos repasses. Para cumprir a ordem do STF, o Estado teria, no mínimo, de quintuplicar os aportes mensais.
– Sabemos que há uma crise financeira, mas é preciso pensar nisso e buscar soluções porque 2020 está aí. Uma alternativa seria vender imóveis – sustenta Bertelli.
Para o coordenador da Frente Parlamentar em Defesa do Pagamento de Precatórios e RPVs da Assembleia, deputado Frederico Antunes (PP), o passivo deveria ser incluído no plano de recuperação fiscal do Estado. O socorro está em negociação com a União.
– A hora de debater isso é agora. Não vai haver outro momento como esse e, sem a ajuda do governo federal, será muito difícil quitar a dívida – pondera Antunes.
Com a missão de avaliar a situação das finanças estaduais, técnicos do Ministério da Fazenda estiveram em Porto Alegre no início do mês. Uma segunda rodada de conversas está marcada para março. Só depois disso, conforme o secretário da Fazenda, Giovani Feltes, será definido o tamanho da ajuda federal – e as contrapartidas.
Feltes considera remota a possibilidade de a União assumir a conta dos precatórios. Na avaliação dele, o mais provável é que o próprio STF acabe revisando o tempo estipulado, já que muitos Estados enfrentam as mesmas dificuldades do Rio Grande do Sul.
– Esse passivo é uma espada na cabeça dos entes federados. Acredito que, até 2020, o prazo será alterado – afirma o secretário.
A espera por pagamento continua
Quase dois anos depois da publicação da reportagem Uma longa espera, os precatoristas cujas histórias foram retratadas por ZH em outubro de 2015 continuam aguardando pagamento – e sem perspectivas de quando receberão o dinheiro. É o caso das famílias Gobbo, Gobatto e Manica.
Há mais três décadas, os vizinhos Sadi Domingos Gobatto,
78 anos, Alcindo Manica, 52 anos, Vito Gobbo, 74 anos, e seus dois irmãos, Sergio, 67 anos, e Dorvalino, 71 anos, tiveram os parreirais cortados ao meio pela Rota do Sol, entre Garibaldi e Carlos Barbosa, na Serra. De lá para cá, sem receber um centavo de indenização, ingressaram na fila dos precatórios.
– Vamos entrar no caixão e não veremos a cor desse dinheiro – lamenta a aposentada Inês Gobbo, 74 anos, mulher de Vito.
O aposentado mantém o otimismo. Se for chamado pela Câmara de Conciliação para negociar o pagamento, Vito pretende autorizar a advogada a ouvir a proposta, embora esteja inclinado a negar: considera o deságio de 40% muito alto.
– Estamos cansados de esperar, mas a esperança é a última que morre – resume o aposentado.
A situação da aposentada Dalila de Souza Gonçalves, 70 anos, é semelhante. Conhecida por ter integrado o grupo do Tricô dos Precatórios, dizimado pela tragédia do voo JJ 3054 da TAM, em São Paulo, em 2007, ela segue frequentando a Praça da Matriz, em Porto Alegre. Sempre que pode, tricota em protesto contra a demora no pagamento dos precatórios.
– Sigo na luta por mim e em memória às companheiras que se foram naquele acidente – diz.
Dalila ainda tem a companhia da amiga Leonice Pereira Doval, 69 anos, que há anos recebeu a Requisição de Pequeno Valor (RPV) a que tinha direito, mas mantém o hábito de tecer.
Outra antiga integrante do grupo, a pensionista Maria Helena da Silva, 85 anos, já não vai mais à praça. Continua aguardando pagamento em casa, na Capital. Ela espera ser chamada para conciliação e diz que fará o acordo.
– Já estou com 85 anos e não posso mais esperar – lamenta Maria Helena.
Câmara de Conciliação fez 105 acordos e é alvo de críticas
Criada para acelerar o pagamento da dívida com precatoristas, a Câmara de Conciliação de Precatórios segue chamando as 2,2 mil pessoas que, no fim de 2016, manifestaram interesse em negociar. Até agora, são 105 acordos, no valor de R$ 37 milhões, com deságio de 40%. O montante equivale a 3% do passivo.
Instituída em outubro de 2015, a câmara passou a receber metade do dinheiro destinado mensalmente pelo Palácio Piratini para honrar os títulos. Desde então, fez três convocações – a terceira rodada começou em novembro e está em andamento.
Por meio das conciliações, a Procuradoria-Geral do Estado (PGE) afirma que é possível pagar mais gente com o mesmo recurso. Mas os 40% de desconto desagradam aos credores. Na avaliação do vice-presidente da Comissão de Precatórios da Ordem dos Advogados do Brasil no Estado (OAB), Ricardo Bertelli, o abatimento deveria ser de "até 40%" e não de 40% para todos. Ele também critica o ritmo de trabalho da câmara:
– O órgão não está dando vazão aos recursos, porque não está funcionando como deveria. Além disso, a maioria das pessoas não aceita esse deságio absurdo.
O coordenador da Procuradoria de Precatórios e RPVs da PGE, Vitor Hugo Skrsypcsak, argumenta que o índice de abatimento segue os limites autorizados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e, por ser igual para todos, é uma forma de "garantir isonomia". Quanto à velocidade dos acordos, Skrsypcsak afirma que nenhum credor foi chamado entre 20 de dezembro de 2016 e 20 de janeiro de 2017 devido ao recesso do Judiciário, ao período de férias do quadro de pessoal e à suspensão dos prazos processuais para assegurar férias aos advogados, antiga demanda da OAB.
– Optamos por não chamar os credores nesse período porque os tribunais estavam fechados e por respeito aos advogados, mas isso não significa que a câmara ficou paralisada. Realizamos atividades internas, analisando os precatórios e preparando as propostas de acordo. A partir de março, serão intensificadas as audiências.
A meta da câmara é convocar o máximo de credores possível nos próximos quatro anos. Como são 54 mil precatórios na fila, seria necessário chamar, em média, 14 mil por ano, até 2020, para tentar zerar a dívida no prazo definido pelo Supremo. O problema é que a verba repassada pelo Estado é insuficiente.
– Enquanto houver recursos disponíveis, vamos seguir convocando – diz Skrsypcsak.