Um problema antigo, agravado desde o começo da pandemia de covid-19, aguarda o próximo prefeito de Porto Alegre: o elevado número de pessoas em situação de rua que perambulam pela Capital e desafiam sucessivas gestões a apresentar uma solução efetiva.
O tema ganhou ainda mais relevância depois de um incêndio em uma unidade da Pousada Garoa deixar 11 mortos, no final de abril. Os principais candidatos à prefeitura do município apostam em estratégias como ampliação das equipes de atendimento e das estruturas de abrigo, além da oferta de cuidados em saúde mental e estímulo à profissionalização.
Depois da tragédia de abril, o modelo de atendimento à população de rua por meio do aluguel de vaga em pensão foi abandonado em Porto Alegre. Conforme a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS), a modalidade de "vagas em pousadas particulares não é mais uma opção, pois a Pousada Garoa não conta mais com nenhum abrigado enviado pela prefeitura e seguirá assim até o fim do contrato, em dezembro". Os últimos 12 acolhidos foram transferidos para um abrigo no fim de agosto e, no começo deste mês, uma nova casa de passagem sob gestão municipal foi aberta na Zona Norte, com capacidade para até 50 pessoas.
A vantagem do modelo de compra de quarto em pensão é que o beneficiado tem a chave do apartamento e liberdade para entrar e sair quando quiser — mas as condições do imóvel podem não ser adequadas, como no caso da Garoa. Nos três albergues municipais, onde é possível apenas pernoitar, é preciso entrar na fila para garantir lugar e cumprir normas como horário de entrada e prazo de permanência.
A prefeitura informa disponibilizar hoje perto de 900 vagas em diferentes formas de atendimento, como serviços de convivência, centros POP (Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua), albergues, casas de passagem e unidades de apoio. A psiquiatra e professora de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Maria Gabriela Godoy sustenta que a rede oficial ainda não dá conta do grande número de pessoas que precisam de um teto, nem aplica todas as estratégias consideradas ideais.
— A experiência internacional mostra que, para ter êxito com a população de rua, é preciso ouvir essas pessoas para entender as demandas, oferecer moradia que não seja temporária e garantir acompanhamento intersetorial — avalia Maria Gabriela.
A Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) contabiliza 3,8 mil pessoas classificadas em situação de rua pelo Cadastro Único (CadÚnico) até junho, segundo informações extraídas e repassadas pela Caixa. Destas, 3,5 mil recebiam algum benefício como Bolsa Família ou Auxílio Moradia, e 84 contava com Estadia Solidária (auxílio para quem saiu de casa por calamidade pública). A professora da UFRGS, porém, aponta que as informações mais atuais disponíveis diretamente no site do CadÚnico, referentes a agosto, informam a existência de 4,9 mil habitantes da Capital sem ter onde morar.
A prefeitura sustenta que, em fevereiro deste ano, foi publicado um decreto que "fortalece o atendimento à população de rua" com o envolvimento de diversas secretarias municipais. As novas diretrizes buscam ampliar os serviços prestados, reorganizando o sistema de atendimento para "garantir acolhimento mais ágil e humanizado". Veja, mais abaixo, o que propõem os principais concorrentes nas eleições sobre esse tema.
As propostas dos candidatos
Veja um resumo das principais estratégias defendidas pelos concorrentes à prefeitura (por ordem alfabética):
Felipe Camozzato (Novo)
- Realizar um acompanhamento adequado das famílias em situação de rua e proporcionar as condições necessárias para que possam ter uma vida digna.
- Firmar parcerias com o setor privado para garantir a oferta de moradia à população em situação de vulnerabilidade.
- Cumprir o papel da prefeitura na fiscalização e na gestão dos contratos estabelecidos com a iniciativa privada, assegurando a qualidade das pousadas e albergues oferecidos a quem vive na rua.
- Promover oportunidades econômicas para as famílias.
- Qualificar os CAPS AD, que são centros de atenção para dependentes de álcool e drogas.
- No caso de dependentes químicos com ficha criminal extensa, que representam risco para si e terceiros, implantar um programa de internação compulsória com orientação técnica e em diálogo com instituições como Ministério Público.
Juliana Brizola (PDT)
- Ampliar significativamente o número de vagas de acolhimento, passando das atuais 650-700 para atender uma parcela maior dessa população.
- Fortalecer a rede de apoio psicológico e de saúde mental para essa população.
- Manter atualizados os Diagnósticos Territoriais anuais, para acompanhar as necessidades específicas.
- Fortalecer as cozinhas solidárias e os grupos de voluntários que acolhem essas pessoas com roupas e comida.
- Criar uma gerência específica para coordenar os esforços voluntários de apoio.
- Implementar um programa municipal de regularização fundiária focado em áreas de vulnerabilidade social, o que pode ajudar a prevenir que mais pessoas fiquem em situação de rua.
- Desenvolver projetos de moradia digna para essa população a longo prazo.
Maria do Rosário (PT)
- Realizar o Censo da População em Situação de Rua, com participação acadêmica e de seus representantes.
- Ampliar as equipes de Consultório na Rua, a oferta de serviços de saúde mental e as equipes de Abordagem Social de Rua, revendo tecnicamente os serviços de acolhimento, abrigos, albergues e casas de passagem, com acompanhamento psicossocial, que não se restrinjam a vouchers para pernoite em serviços privados.
- Ampliar unidades de restaurante popular, que prioritariamente atenderá a população em situação de rua.
- Implementar políticas de moradia em repúblicas e em habitações para famílias, utilizando o programa Minha Casa Minha Vida e alocando prédios públicos federais.
- Instalar o Comitê Intersetorial de Acompanhamento das Políticas da População em Situação de Rua (CIAMP), conforme aprovado em lei municipal.
Sebastião Melo (MDB)
- Ampliar a oferta de vagas de acolhimento e fortalecer os serviços de atendimento em saúde mental à população.
- Mapear o cenário atualizado da população em situação de rua em Porto Alegre para dar eficácia às políticas públicas existentes e futuras. Já está em processo de contratação uma pesquisa para levantar estes dados (o último estudo foi realizado em 2016).
- Inspirado no projeto da Prefeitura de São Paulo da Vila Reencontro, que acolhe temporariamente famílias em situação de rua, oferecer moradia individualizada e qualificada por um período transitório para construir, com acompanhamento social, o processo de saída da situação de rua.
- Fazer a ampliação de pelo menos sete Centros de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) e Centros Pop, e desenvolver um plano de inclusão profissional.
Especialista defende política com três pilares básicos
A psiquiatra e professora de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Maria Gabriela Godoy estuda o tema das pessoas em situação de rua e faz parte de um grupo de pesquisa dedicado ao assunto. Com base em trabalhos acadêmicos internacionais e boas práticas adotadas em outros países, como Portugal, Maria Gabriela sustenta que qualquer estratégia a ser adotada pela próxima gestão municipal precisa levar em conta três pontos fundamentais:
1) Ouvir a população de rua
Embora sejam o alvo das políticas públicas, nem sempre os próprios interessados são ouvidos na etapa de formulação dos projetos. É recomendado consultar os futuros beneficiados para entender melhor quais as necessidades e expectativas.
— É preciso dialogar com essa população em espaços participativos de discussão. A política nacional prevê isso desde 2009 por meio de comitês intersetoriais. Porto Alegre criou o seu em 2015, mas funcionou de maneira irregular. Parou em 2018, voltou entre 2021 e 2022, agora estava para ser retomado via Ministério Público. Qualquer candidatura precisa se comprometer com o funcionamento deste espaço — avalia Maria.
2) Adoção de solução sem prazo de término
Outro ponto fundamental, geralmente negligenciado nas soluções adotadas em nível local, é a implementação de medidas que não tenham definição prévia de duração. Quase sempre, a oferta de benefícios como auxílio-moradia ou algum tipo de abrigo tem prazo determinado para acabar. Na avaliação dos estudos internacionais, a disponibilização de moradia provisória apenas adia a volta para a rua e acaba por gerar um sentimento de desesperança na população atendida, que passa a acreditar que não conseguirá sair em definitivo das ruas mesmo que seja temporariamente incluída em algum projeto social.
3) Acompanhamento intersetorial
A população de rua tende a ser heterogênea, com necessidades específicas para grupos como crianças, mulheres, gestantes ou pessoas com algum tipo de transtorno mental. Por isso, é recomendável que seja acompanhada por equipes multidisciplinares capazes de garantir atendimentos complementares conforme cada caso e, quando viável, encaminhamento para profissionalização.
— Precisamos pensar nessa perspectiva de oferta de moradia sem prazo de término, pelo tempo que a pessoa precisar, com acompanhamento e geração de trabalho e renda — resume a especialista da UFRGS.