É enganoso afirmar que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tenha “terceirizado a censura” por meio de licitações à iniciativa privada para monitoramento de redes sociais e para compilação de conteúdos de veículos de imprensa, prática conhecida como “clipping”. As contratações foram realizadas por meio dos pregões eletrônicos 29/2022 e 30/2022, respectivamente. Em nenhuma parte dos termos de referência desses pregões atribui-se a função de tirar publicações do ar. Além disso, o Programa Permanente de Enfrentamento à Desinformação do TSE veda a terceirização de “competências dos órgãos de investigação e persecução penal”.
Conteúdo investigado: em vídeo postado no Twitter em 28 de novembro, o vereador Rodrigo Marcial (Novo), de Curitiba, acusa o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de “terceirizar a censura” ao contratar uma empresa para “monitorar os cidadãos brasileiros” nas redes sociais. Além disso, Marcial alega que a Partners Comunicação Integrada teria feito doação ao PT em 2016. No dia 30, também no Twitter, o mesmo vereador acusou o presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, de querer censurar veículos impressos, televisivos e sites de notícias por meio de contratação de serviço de “clipping”.
Onde foi publicado: Twitter.
Conclusão do Comprova: é enganoso afirmar que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tenha “terceirizado a censura” por meio de licitações à iniciativa privada para monitoramento de redes sociais e para clipping de veículos de imprensa. As contratações foram realizadas por meio de pregão eletrônico, com seus termos de referência (regras sobre serviços a serem prestados e condições de pagamentos) publicados, não contestados e sem nenhuma atribuição de tirar publicações do ar.
O termo de referência da primeira licitação, Pregão Eletrônico 29/2022, que teve como vencedora a Partners Comunicação Integrada, apenas atribui à empresa a função de monitorar postagens de interesse da Justiça Eleitoral, analisá-las e formular relatórios para estudo interno no TSE.
Quanto à segunda licitação, Pregão Eletrônico 30/2022, cujo vencedor foi o empresário individual (EI) Sérgio Machado Reis, o termo de referência descreve o monitoramento dos veículos de imprensa como “prestação de serviços em clipping eletrônico”.
Além do que mostram os termos de referência, o “Plano Estratégico Eleições 2022” do TSE, que determina diretrizes para o combate a fake news neste ciclo eleitoral como parte do Programa Permanente de Enfrentamento à Desinformação do tribunal, veda a terceirização de “competências dos órgãos de investigação e persecução penal”.
Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
Alcance da publicação: o Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. Até as 12h de 7 de dezembro, o tuíte principal sobre monitoramento de redes sociais teve 844,5 mil visualizações, 13,2 mil retuítes e 36,9 mil curtidas, enquanto que a postagem sobre o clipping de veículos de imprensa teve 627,5 mil visualizações, 28,6 mil retuítes e 74,1 mil curtidas.
O que diz o responsável pela publicação: ao Comprova, Marcial afirmou que o contrato do TSE com a Partners Comunicação Integrada para monitoramento das redes sociais é inconstitucional, porque o TSE não tem atribuição de investigar, o que compete ao Ministério Público Eleitoral e às polícias, de acordo com ele. A Partners, segundo o vereador, também poderia supostamente fazer o bloqueio de contas nas redes sociais, função negada pela Partners e não descrita no edital do respectivo pregão.
A respeito do contrato do TSE para prestação de serviço de clipping de notícias de meios impressos, portais de notícias, televisões e rádios, o vereador afirma que se trata de ferramenta de investigação do tribunal. Ao Comprova, Marcial alega que o TSE segue o mesmo modo de atuação do contrato de monitoramento de redes sociais. Ele ainda diz que foram abertos temas e assuntos a serem pesquisados, o que de fato consta no respectivo pregão, e que isso configuraria “ferramenta adicional na construção dessa polícia repressiva que se transformou o TSE para se fazer censura”.
Advogado de formação, Rodrigo Marcial tem 28 anos e foi eleito vereador pelo partido Novo em Curitiba (PR) para o mandato de 2021 a 2024. Ele atua também como professor de Economia. Ativo no Twitter, onde expressa opiniões sobre temas nacionais e locais, Marcial afirmou ter votado pela reeleição de Jair Bolsonaro no segundo turno das eleições, mas frisa não questionar os resultados do pleito nem relacionar suas denúncias contra o TSE às eleições presidenciais. O vereador diz que seu objetivo é lançar elementos para um possível impeachment do presidente do tribunal, ministro Alexandre de Moraes.
Como verificamos: através do Diário Oficial da União, do Sistema de Licitações do TSE (Silic) e da consulta de atas do Portal de Compras do Governo Federal, o Comprova buscou informações sobre os contratos para monitoramento das redes sociais (Pregão 29/2022 do TSE) e para clipping de veículos de imprensa (Pregão 30/2022 do TSE).
A reportagem entrevistou o vereador Rodrigo Marcial por telefone. Também tentou falar com a Partners Comunicação Integrada, mas não obteve resposta. Antes mesmo do contato do Comprova, a empresa já havia se manifestado sobre as acusações por meio de duas postagens no Linkedin (1 e 2).
Para apurar mais informações sobre os vencedores dos pregões, a Partners Comunicação Integrada e Sérgio Machado Reis, o Comprova consultou uma base de dados do Cruzagrafos, projeto da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).
Conteúdos não são retirados do ar
Três fontes de informação contextualizam as atribuições das duas empresas contratadas para monitorar as redes sociais e os veículos de imprensa: os termos de referência dos respectivos pregões; o Programa Permanente de Enfrentamento à Desinformação do TSE; e uma nota oficial da Partners Comunicação Integrada, empresa vencedora do primeiro pregão.
Nem o termo de referência do pregão das redes sociais (29/2022) nem o dos veículos de imprensa (30/2022) prevê a delegação de poder para retirar do ar ou de circulação qualquer tipo de conteúdo.
No caso do primeiro pregão, atribui-se à empresa a função de monitorar postagens, analisá-las e formular relatórios. O escopo é, além dos próprios perfis oficiais do TSE, publicações que contenham “palavras-chave e temas de interesse definidos pelo Tribunal”. Em relatórios mensais, como consta no item 3.1.1.5.3, a empresa pode, no máximo, incluir “proposição de ações nas redes sociais”.
Quanto ao segundo, o termo de referência descreve o acompanhamento dos veículos de imprensa como “prestação de serviços em clipping eletrônico”, que, como consta no item 3.1.2.1, envolvem apenas “realizar o monitoramento e a análise de jornais, revistas, colunas, blogues, sites regionais, nacionais e internacionais e programas e matérias de rádio e TV de interesse do TSE”. Assim, como no caso do primeiro pregão, trata-se apenas da compilação de dados e formulação de relatórios.
As funções das duas empresas em questão também podem ser contextualizadas pelo Programa Permanente de Enfrentamento à Desinformação do TSE, instituído pela Portaria nº 510, de 4 de agosto de 2021. Esse documento é até mesmo citado por Marcial no primeiro vídeo postado, de 28 de novembro. O vereador o chama de “plano de enfrentamento do próprio TSE”.
Como descreve o tribunal em seu site oficial, o programa trata da iniciativa da Justiça Eleitoral envolvendo plataformas de redes sociais e outras instituições públicas e privadas, para “prevenir e combater a disseminação de notícias falsas (fake news) e a desinformação sobre o processo eleitoral, principalmente na internet”. O Comprova é uma de suas instituições parceiras.
O Plano Estratégico Eleições 2022 do TSE, que integra o Programa Permanente de Enfrentamento à Desinformação do tribunal, veda a terceirização de “competências dos órgãos de investigação e persecução penal”. De acordo com o texto, “o Programa não possui viés sancionatório, de modo que não interfere nas competências dos órgãos de investigação e persecução penal, como a Polícia Federal e o Ministério Público Eleitoral, e dos juízes e Tribunais Eleitorais, para apurar e/ou punir eventuais ilícitos cometidos pela disseminação da desinformação”.
Por fim, a própria Partners Comunicação Integrada, citada por Marcial no vídeo do dia 28, negou, em nota oficial no Linkedin, ter recebido poderes para retirar conteúdos das redes sociais.
“Vale ressaltar que compete à Partners tão somente realizar o serviço de monitoramento de alusões ao Tribunal Superior Eleitoral nas redes sociais, não sendo responsabilidade ou atribuição da empresa definir estratégias subsequentes de comunicação ou adotar qualquer ação relacionada a perfis nas redes sociais”, disse a empresa na nota, que não menciona o vereador.
O comunicado foi lido como direito de resposta em programa da Jovem Pan News após entrevista de Marcial ao canal de televisão sobre o tema. Em outra publicação no Linkedin comemorando o direito de resposta, a Partners cita Marcial e o acusa de “divulgação de uma fake news”.
O Comprova não encontrou posicionamento oficial do empresário individual (EI) Sérgio Machado Reis, vencedor do pregão do clipping de veículos de imprensa. A reportagem também não buscou contactá-lo, porque ele não é mencionado em nenhum dos tuítes de Marcial verificados, fato a ser relembrado no terceiro tópico desta verificação.
Provisões restringem arbitrariedade no monitoramento
Além de não terem nenhum poder para retirar publicações do ar, as empresas contratadas nos pregões em questão também não tinham autoridade própria para definir o escopo dos conteúdos a serem monitorados.
Ambos os termos de referência preveem o estabelecimento de ferramenta de monitoramento automatizada com base em palavras-chave, definidas pelo TSE.
Esse ponto é perceptível no item 3.1.1.1.3 do pregão das redes sociais — “a contratada não deverá restringir a quantidade de citações a serem capturadas e monitoradas” — e no 3.1.1.3 daquele dos veículos de imprensa — “o serviço deverá propiciar a captação sistematizada, o monitoramento e o cadastramento diário das notícias”.
No caso do segundo pregão, a empresa nem pôde escolher os veículos de imprensa a serem monitorados. O termo de referência já providenciava a lista, que é mencionada por Marcial no vídeo de 30 de novembro.
Partidarismo
No vídeo do dia 28 de novembro, no qual fala sobre o pregão do monitoramento das redes sociais, Marcial menciona a empresa contratada, a Partners Comunicação Integrada, e denuncia o seu sócio-majoritário de ter sido doador do Partido dos Trabalhadores (PT) em 2016. De fato, a afirmação procede.
Diretor e representante legal da empresa, Domingos Savio doou R$ 300 à campanha do deputado Reginaldo Lopes (PT-MG) para a Prefeitura de Belo Horizonte, Minas Gerais. Savio, que é apenas um homônimo do deputado Domingos Sávio Campos Resende (PL-MG), fez a doação como pessoa física.
Já no vídeo do dia 30, no qual discute o pregão do clipping de veículos de imprensa, Marcial nem cita o nome do empresário individual Sérgio Machado Reis, vencedor da licitação. Entretanto, assim como a Partners, ele teve relação financeira com campanha política. Como pessoa jurídica, Reis prestou dois serviços (1 e 2) de impulsionamento de conteúdo para a campanha de reeleição do deputado federal Filipe Barros (PL-PR) nas eleições deste ano. O valor total foi de R$ 12 mil.
Nos termos de referência das duas licitações, não há ressalvas a posicionamentos políticos de sócios e executivos das empresas. Nos pregões, são avaliadas a competência para a execução dos serviços, a integridade do concorrente e a proposta de preço.
Por que investigamos: o Comprova investiga conteúdos suspeitos que viralizam nas redes sociais sobre políticas públicas do governo federal, a pandemia e peças que questionam o resultado ou a integridade das eleições gerais. Conteúdos que fazem acusações contra instituições sem apresentar provas ou omitindo contexto ajudam a desinformar, gerando prejuízos para a democracia e à estabilidade do Estado de Direito.
O Comprova é parceiro do Programa Permanente de Enfrentamento à Desinformação no Âmbito da Justiça Eleitoral e participa da Coalizão Permanente para Checagem juntamente com outras instituições e agências de checagem brasileiras. O projeto colabora compartilhando verificações relacionadas à Justiça Eleitoral e aos seus integrantes, ao sistema eletrônico de votação e ao processo eleitoral para que sejam divulgadas pelo site Fato ou Boato. No âmbito dessa participação, o Comprova e as demais iniciativas de checagem atuam de modo independente, preservando suas metodologias e princípios editoriais.
Outras checagens sobre o tema: sobre a remoção de conteúdos das redes sociais no âmbito das eleições deste ano, o Comprova mostrou nos últimos dois meses que não há registros que imprensa internacional repercutiu suposta ditadura do STF e do TSE e que a retenção de conta do deputado federal-eleito Nikolas Ferreira (PL-MG) no Twitter segue diretrizes da plataforma e exigências legais. O Comprova também já explicou que é falso que 70% do processo eleitoral seja terceirizado e que a terceirização comprometa a integridade das eleições.