Foi-se o tempo em que o seu voto elegia apenas um político por vez. Fenômeno em ascensão nas disputas eleitorais, as candidaturas coletivas estão se proliferando na campanha municipal de 2020. No Rio Grande do Sul, há pelo menos 12 iniciativas, espalhadas pela Capital e pelo Interior.
As experiências são todas vinculadas a partidos de esquerda, como PSOL, PCdoB, Rede e PT. Disseminadas a partir de uma campanha exitosa em São Paulo em 2018 (mais detalhes abaixo), as candidaturas compartilhadas tentam desidratar o aspecto personalista da política.
A legislação eleitoral não tem regras específicas para mandatos coletivos. Cada grupo precisa escolher uma única pessoa para ser o candidato oficial, com nome e foto na urna eletrônica, e para assumir o mandato em caso de vitória. O escolhido também é o único a ter direito de apresentar projetos de lei e discursar na tribuna. Trata-se sobretudo em um modelo baseado na confiança entre os companheiros de "chapa", principalmente diante da temas polêmicos, como a ocupação dos cargos em cada gabinete e o eventual rateio dos salários. Sem regramento legal, cada coletivo estipula suas próprias regras.
Em geral, o objetivo é angariar apoio em torno de causas específicas. Das 12 candidaturas gaúchas, quatro têm como bandeira principal a defesa das mulheres. Outro tema quase onipresente é a luta antirracista e pelos direitos da comunidade LGBT+. No total, são cinco em Porto Alegre e cinco na Região Metropolitana e duas no Interior. Em Bagé, o foco é na juventude. Em Uruguaiana, na defesa dos homossexuais e, em Canoas, no feminismo. Também em Canoas, a Rede Sustentabilidade tem três candidaturas coletivas, duas representativas da educação, com professores da rede municipal, e outra com representantes da cultura.
Em Viamão, quatro mulheres negras do bairro Santa Isabel pretendem abordar racismo, machismo, homofobia, empreendedorismo, cultura e violência doméstica. A candidatura, filiada ao PT, foi construída dentro do coletivo Teremos Vez e conta com uma educadora social, uma estudante de jornalismo, uma cantora e uma empadeira. Um conselho político formado por 85 pessoas e dividido por eixos temáticos ajuda na tomada de decisões.
— A política é um espaço muito branco e masculino. Quando decidimos montar uma candidatura coletiva, fomos vendo quem desejava participar e quem representava as pautas que queremos defender. A construção não termina com a eleição. Eleitas ou não, vamos continuar – comenta Fátima Maria, escolhida para representar o grupo na urna eletrônica.
Na Capital, duas iniciativas semelhantes reúnem mulheres negras. Uma delas é batizada de Nós Mandato Coletivo, com um grupo filiado ao PSOL formado por ativistas da educação, como professoras, servidoras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e uma estudante. Outro é batizado de Vamos Juntas, ligado ao PT, que reúne quilombolas, empreendedoras, ialorixás, pessoas com deficiência e cientistas sociais. Outra candidatura, no PCdoB, reúne jovens ligados à militância estudantil que criaram um grupo chamado Movimento Coletivo.
Outro grupo, de Porto Alegre, faz parte do movimento nacional Cristãos contra o Fascismo, cujo objetivo é se contrapor ao discurso conservador de políticos ligados à religião. O grupo lançou 67 candidaturas no país. Também vinculada ao PSOL, a experiência porto-alegrense abriga um teólogo, uma professora, um estudante indígena e um técnico de enfermagem.
— Somos todos cristãos e queremos mostrar que o discurso religioso não é um bloco monolítico, cuja pauta é quase sempre moral. Vamos falar de violência, conquistas sociais, direitos humanos – afirma o teólogo Tiago Santos, que vai representar o grupo na urna eletrônica.
Para o cientista político Gustavo Grohmann, os mandatos coletivos ainda são incipientes para que se tenha uma avaliação mais consistente do seu funcionamento. Todavia, o professor da UFRGS salienta que a iniciativa dá mais relevância as plataformas eleitorais de cada coletivo e aproxima o eleitor.
— Esse modelo tende a estreitar a relação dos candidatos com as suas comunidades e também pode tornar mais eficaz a prestação de contas. Mas ainda é um caminho em aberto. Temos de acompanhar para ver como vai funcionar — avalia.
Em Natal (RN), surgiu a primeira candidatura coletiva ao Executivo. Na chapa do PSOL à prefeitura da capital, Nevinha Valentim e Danniel Morais são postulante à prefeita e vice, respectivamente. Mas junto também estão a servidora federal Liliana Lincka e o cientista social Sol Victor. Em caso de vitória de Nevinha, nenhum dos três pretende ter cargos de secretário municipal. A ideia é compor uma assessoria especial para governar de forma conjunta. Na campanha à Câmara de Vereadores local, há outras quatro candidaturas coletivas.
— A melhor forma de se fazer política é com vários olhares. Precisa de algo diferente, que quebre a lógica do sistema. É o caminho mais difícil, mas é o que a gente acredita — afirma Morais.
Proposta de regulamentação não avança
Ainda sem regramento próprio, os mandatos coletivos são objeto de uma proposta de emenda à Constituição (PEC) em trâmite na Câmara dos Deputados. Apresentada pela deputada Renata Abreu (Podemos-SP), a PEC 379/17 apenas inclui um inciso na Carta Magna, afirmando que os mandatos legislativos poderão ser individuais ou coletivos.
A despeito da simplicidade da redação legal, a proposta está parada desde novembro de 2017 na Comissão de Constituição e Justiça e está nas mãos do terceiro relator consecutivo, sem apresentação de parecer. O texto permite os mandatos coletivos para vereador, deputado e senador e prevê que a regulamentação será feita por lei específica.
No Exterior, uma das primeiras experiência de candidatura compartilhada ocorreu na Suécia, em 2002. Na ocasião, alunos e professores de uma escola secundária fundaram um partido e conquistaram uma cadeira para uma aluna no parlamento da cidade de Vallentuna.
O objetivo era manter um mandato que permitisse a participação de todos os eleitores, por meio de um site na internet. O projeto foi tão exitoso a ponto de o grupo se reeleger em 2006, com a mesma estudante, e em 2010, com um professor.
Em São Paulo, “codeputados” são pagos como assessores
No Brasil, há iniciativas semelhantes em Câmaras de Vereadores de Goiás e Minas Gerais, na Câmara Legislativa do Distrito Federal e nas Assembleias Legislativas de Pernambuco e São Paulo.
Na capital paulista, a ideia começou a ser concebida em 2016, quando um grupo de militantes de vários partidos ajudavam na construção de oito candidaturas voltadas a causas sociais, como ambientalismo, feminismo e direitos humanos. Em 2018, eles decidiram unir os esforços em prol de um único mandato, aglutinando 15 pessoas de vários partidos. Divergências internas e restrições de algumas siglas reduziram para nove o número de integrantes da “chapa”, que foi eleita pelo PSOL tendo oficialmente à frete do mandato a jornalista Mônica Seixas.
— Nunca teve antes algo assim, então somos a experiência de nós mesmos. Tem sido um aprendizado todo dia e vamos aprimorando o processo. Como é quase impossível obter consenso, optamos pelo consentimento. Tem briga provoca dores, mas tem funcionado bem — revela Mônica.
Os demais “codeputados”, filiados ao PSOL, à Rede e ao PDT, ocupam cargos no gabinete e todos ganham praticamente o mesmo salário: R$ 8 mil. Mônica, por ser a deputada oficial e ter mais encargos que os colegas recebe R$ 11 mil, na “rachadinha ao contrário”, como denomina. Três integrantes do grupo se licenciaram para concorrer a vereador em candidaturas individuais, mas a ideia é tentar a reeleição em 2022, desta vez com outra pessoa representando o mandato.
— Mandatos coletivos são muito importantes para garantir acesso dos mais vulneráveis às esferas de poder, mas não pode virar ferramenta de marketing. Nessa eleição estão surgindo muitas candidaturas assim, mas o eleitor precisa pensar bem e se perguntar por que está votando num coletivo — afirma Mônica.
Todavia, alguns partidos são refratários à iniciativa. Para o Novo, legenda que se recusa a usar recursos dos fundos partidário e eleitoral no financiamento interno, os mandatos são exclusivamente individuais.
— Mandato coletivo é uma roupagem nova e marqueteira dada à velha prática do carguismo e do rodízio de suplentes, que já existe há décadas no Brasil — critica o deputado estadual do Rio Grande do Sul Fábio Ostermann (Novo).